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A bem da Nação

Curtinhas XIX

A LITÂNIA DE UMA CRISE

v     O maniqueísmo descreve-se em poucas palavras: para mim, o monopólio da razão; para ti, o erro contumaz.

v     Ora, estas crises lá na outra ponta do Mediterrâneo são sempre campo farto para os muitos maniqueísmos que por aí campeiam. E, nesta atribuição sistemática da culpa a Israel, gente que se diz progressista, mas que lê pouco, não vê que está a comungar dos preconceitos ideológicos que instigaram Hitler, Mussolini, Franco (para quem a desgraça de Espanha tinha origem nos judeus e na maçonaria), Staline, progroms czaristas - e, em tempos mais recuados, os Concílios de Toledo.

v     Ao longo dos séculos, tudo tem servido de pretexto para acertar contas cuidadosamente ocultadas com os judeus: em vez da observação honesta dos factos, a vontade de justificar, seja como for, a certeza bem-pensante do momento. Só por isso, o porquê do “problema judaico” (fenómeno eminentemente europeu, com uns quinze séculos de existência), e o papel que os próprios judeus nele têm desempenhado, continuam terra incognita.

v     Na presente crise, as acusações lançadas deixam a lógica malferida (tal como a verdade, a lógica conta-se sempre entre as primeiras vítimas de qualquer crise mais grave). Entendamo-nos: Israel foi criado para resolver os problemas históricos da Mitteleuropa com os seus judeus, e para esbater a lembrança do holocausto (nós por cá, na Península Ibérica, solucionáramos de vez o nosso “problema judaico” no final do séc. XV; e as restantes nações europeias nunca fizeram dos seus judeus um problema por aí além).

v     O próprio movimento sionista surgiu na Europa Central, no seio de judeus askhenazis, descendentes muito provavelmente, não de povos semitas, mas de populações judeizantes que eram numerosas na bacia mediterrânica, desde o séc. V. Para o sionismo moderno, Israel poderia ser o território original da sua religião - mas não era, seguramente, a terra dos seus antepassados.

v     É legitimo perguntar se, terminada a guerra, as reparações que os Aliados sentiam dever aos judeus europeus não seriam mais justas e generosas se estes continuassem, como até aí, cidadãos dos países que os viram nascer. E, ainda em tempo de perguntas: Porque não se sentiram as potências aliadas igualmente em dívida para com todas as outras vítimas do holocausto? Estaria subjacente a esse sentimento de culpa e expiação o desejo de solucionar de vez o tal “problema judaico”?

v     Duas realidades dessa época parecem incontornáveis: os judeus da Mitteleuropa, depois de terem passado o que passaram, não confiavam facilmente na vizinhança; e as nações europeias, a braços com o que a guerra destruíra, não tinham como os compensar (o milagre económico europeu nem sequer era ainda sonhado).

v     A solução foi dar aos judeus um território onde eles se instalassem, para aí cultivarem a sua própria recompensa. Pensou-se em Moçambique, pensou-se na Patagónia, mas o apelo ideológico-religioso da Terra Prometida falou mais alto. Com a comodidade de ela, desmembrado o império turco, se repartir por protectorados onde França e Reino Unido punham e dispunham a seu bel-prazer (e com a curiosidade de nenhuma destas duas potências ter conhecido, portas a dentro, um “problema judaico”). Por outro lado, o facto de as alternativas serem, ou uma colónia de um Estado europeu que mantivera uma neutralidade colaborante com os Aliados, ou uma província de um Estado independente, não terá sido estranho à decisão.

v     Quem pagou a factura da solução mais expedita (perfeita mesmo, sob vários ângulos) foram os que, à data, habitavam a Terra Prometida, forçados a apertarem-se para dar espaço aos que recém chegavam - ou a partir (o que traz à ideia uma outra pergunta: porque não recorrer agora a solução idêntica, e encontrar algures, para os palestinos deslocados, um território?)

v     O busílis de tudo isto está em que o Estado de Israel foi concebido como uma democracia "à ateniense" - ou seja: o acesso à cidadania pressupõe um dado atributo étnico-religioso-cultural. A prova étnica está na origem indo-ariana (os judeus sefaraditas e, sobretudo, os oriundos do Norte de África e da Etiópia são alvo de uma discreta discriminação); a prova religiosa está na veneração da Tora (o que levanta atritos com quem pratique outras religiões ou seja, mesmo, agnóstico); a prova cultural consiste, também ela, na adopção de princípios que caracterizam o modo de vida ocidental.

v     Por isso, os que habitavam a Terra Prometida não tinham lugar no novo Estado de Israel. Como nunca terão, porque o diferencial das taxas de natalidade entre judeus e não-judeus levaria a que, no curto espaço de uma década, a base actual da cidadania ficasse completamente subvertida. Sob este ponto de vista, enquanto Israel for um Estado étnico-confessional (logo, essencialmente não-moderno) o problema de fundo criado pelas potências aliadas não tem solução.

v     Racismo dos israelitas? Antes de nos precipitarmos com a resposta, convém meditar sobre o modo como nós, europeus, estamos a reagir à crescente presença de outras culturas nas nossas ruas.

v      Se tudo isto está na origem do actual conflito israelo-libanês, nada disto lhe serve de justificação.

v     O Hezbollah não é um Estado, nem é formado por apátridas. Mobiliza, sim, libaneses que, tanto       quanto se sabe, não foram directamente afectados pela criação de Israel. E o que se passa é que cidadãos de um Estado (o Líbano) se armam, se militarizam e se treinam para atacar continuamente um Estado vizinho (Israel), sob o falso pretexto da solidariedade islâmica. Por isso, a causa da presente crise não mora em Israel - mora no Líbano. E é no Líbano que terá de ser remediada.

v     Neste contexto, o Governo libanês só tem três saídas: (a) ou considera o Hezbollah um grupo que actua à margem da lei interna, e deverá perseguir, prender e julgar os seus membros; (b) ou perfilha os objectivos e as acções do Hezbollah, e deverá declarar guerra a Israel, suportando-lhe as consequências; (c) ou declara-se impotente, e terá de pedir ajuda internacional para meter na ordem os que, sendo seus cidadãos, e a partir do seu território, atacam um Estado vizinho.

v     Nas actuais circunstâncias, ao lutar contra uma agressão que se crê ao abrigo de qualquer resposta só porque não reveste a forma tradicional de Estado versus Estado, Israel combate por todos nós. Defenderia eu exactamente o mesmo se, por exemplo, o Grupo dos Amigos de Olivença, farto de esperar, começasse a atacar a tiro e à bomba a Espanha e os espanhóis que encontrasse.

 

Lisboa,. Agosto de 2006

A. Palhinha Machado

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