UM ZURRO EM DOHA
Galo francês: - Eu gosto muito da minha horta onde debico e esgravato todo o dia.
Cão inglês: - Pois é, mas a tua horta é muito cara com todo o trabalho que temos que ter com ela.
Vaca holandesa: - Oh galo! Eu também quero ter uma horta como tu mas a minha é mais pequena e não dá trabalho aos outros animais. Porque é que não hás-de ter uma horta como nós?
Galo francês: - Eu não quero as vossas hortas. Quero a minha e não tenho nada a ver com os vossos problemas.
Cavalo alemão: - Mas oh galo! O nosso problema tem a ver apenas com o dinheiro que gastamos com a tua horta e não temos problemas com as nossas que estão muito arranjadinhas e não custam dinheiro aos outros animais da quinta.
Galo francês: - Ah Vocês não gostam de mim e estão só a querer levantar-me problemas . . .
Cão inglês: - Não é nada disso. Nós não temos nada contra ti. Temos é contra o custo da tua horta, com o dinheiro que temos que pagar para que tu possas continuar a esgravatar e a debicar.
Galo francês: - Olhem vocês todos, seus invejosos, com muita atenção ao que vou dizer: se vocês continuam com essas reclamações, eu saio da quinta e faço um grande escândalo junto das outras quintas e o primeiro a que me vou queixar é ao vizinho bisonte.
Cão inglês: - Ao vizinho bisonte? Porquê a ele se sempre te deste tão mal com ele?
Galo francês: - Sim, às vezes temos uns problemas mas isso não quer dizer que eu não goste dele. Até lá mandei um Alfaiate quando ele nasceu.
Cão inglês: - Bem sei, bem sei. Fizeste isso quando pensaste que me conseguias tirar aquela quinta ficando tu a mandar nela . . . Só não estavas à espera que ele te mandasse embora e não te ligasse nenhuma importância.
Galo francês: - Então, se não vou fazer queixa ao bisonte, vou à ursa russa.
Vaca holandesa: - E que lhe vais dizer? Que nós não queremos pagar os custos da tua horta? E vais perguntar-lhe se ela quer pagar para que continues a debicar e a esgravatar? Já estou a ver a resposta que vais levar . . . E há mais: ela nem sequer pertence cá à Associação das quintas . . .
Galo francês: - Olhem bem: eu não repito o que já disse e se vocês continuam a maçar-me . . .
Cavalo alemão: - Olha galo! Só te damos mais sete anos para que debiques e esgravates. A partir de 2013 acaba-se esta coisa de termos que pagar os custos que a tua horta nos dá. Organiza-te até então e não venhas para cá com mais ameaças. Não tens para onde fugir se não quiseres ficar connosco e sabes isso muito bem. Não há elefante indiano nem tigre chinês que te valham e quanto aos macacos africanos . . .
Galo francês: - Tenho os guanacos sul-americanos que são meus amigos . . .
Cão inglês: - Teus amigos? Espera até veres o que te pedem para serem teus amigos. Julgas que vais dançar o tango e que não tens que pagar por isso?
Galo francês: - E o que me pedem eles?
Vaca holandesa: - Nem imagino . . . Então tu não sabes que aquela quinta pertence na realidade ao bisonte? E queres lá meter o bico? Deves estar alucinado, galo!
Galo francês: - Mas a quinta do bisonte também é cara e acho que podemos fazer alguma coisa para o calar. Se vocês me ajudarem a calar o bisonte, eu vou pensar em dar uma volta à minha quinta para ela ficar mais barata.
Cavalo alemão: - Ora bem, parece que começamos a entender-nos . . .
Touro espanhol (em surdina, junto à crista do galo): - Oh galo! Não te armes em parvo; não me estragues o arranjinho. Enquanto tu tiveres a tua quinta assim, eu também vou tendo a minha parecida com a tua e a mim ninguém me chateia porque estão à espera de me venderem uns pregos e umas redes de galinheiro.
Galo francês (em surdina, junto à orelha do touro): - Posso então contar contigo?
Touro espanhol (em surdina, junto à crista do galo): - Claro que podes. Mas ninguém pode saber que somos aliados.
Galo francês (em surdina, junto à orelha do touro): - Não há problema. Eu até sou capaz de chamar o Vasco e fazer de conta que sou amigo dele . . .
Touro espanhol (em surdina, junto à crista do galo): - E não és amigo do Vasco?
Galo francês (em surdina, junto à orelha do touro): - Isso é uma conversa que havemos de ter mais tarde. Agora vamos lá tratar de embrulhar esses outros que me querem chatear, antes que te comecem a chatear a ti.
Touro espanhol (em surdina, junto à crista do galo): - Boa, vamos embrulhá-los.
Galo francês (em altos berros): - OUÇAM TODOS!!! Estou pronto a negociar desde que me ajudem a convencer o tigre chinês de que os meus pregos são os melhores e a convencer o elefante indiano de que os meus porta-aviões são os mais rápidos.
Cão inglês: - Bem, vou conversar com os outros animais da quinta para saber se estão de acordo . . .
O cão foi conversar com a vaca, com o cavalo e com o touro esquecendo-se do burro português e do rato italiano que não têm voz na matéria.
Cão inglês: - Oh galo! Estamos de acordo com o que pedes mas é claro que os nossos pregos e os nossos barcos também não são mauzinhos de todo . . .
Drriimm . . . drriimm . . . Alguém bate ao portão da quinta. Naquele semestre, o porteiro de serviço era o cão inglês.
Cão inglês: - Ah É o bisonte! Seja muito bem aparecido, bisonte! Em que lhe posso ser útil?
Bisonte: - Oh cão! Ouvi dizer que vocês andam aqui na vossa quinta a imaginar uma conversa com o tigre chinês e com o elefante indiano e eu não quero ficar do lado de fora dessa conversa.
Galo francês (metendo-se na conversa): - E vamos falar também com o guanaco argentino, com a lula brasileira, com a tartaruga chilena . . .
Bisonte: - E os macacos africanos ficam de fora?
Cavalo alemão: Ninguém fica de fora, a menos que não queira entrar.
Vaca holandesa: Já fizemos uma prospecção de mercado e só não conseguimos convencer a ursa russa e o abutre iraniano a entrarem na conversa.
Bisonte: Óptimo! E onde vamos todos conversar?
Grilo suíço: A minha gaiola está aberta para vos receber a todos . . . desde que paguem a renda.
Cão inglês: - Está arrematado, vamos conversar para casa do grilo suíço.
Estabelecidos em casa do grilo, todos acharam que era melhor andar a passear em vez de se ficarem pelo Lago Léman. E assim foi que se encontraram uma vez no Uruguay, outra em Doha, outra em Hong-Kong e o que mais se verá . . .
Começaram por se convencer uns aos outros de que a livre troca de produtos era a panaceia para todos os males da bicharada; passaram a combinar a maneira de os ricos conseguirem entrar na casa dos pobres evitando o sentido inverso; esbarraram num impasse completo quando os pobres compreenderam que estavam a ser enganados e quando os ricos perceberam que os pobres são efectivamente pobres mas não são estúpidos.
E agora?
Agora estamos prestes a reconhecer que o bisonte, o cão, o galo e o touro têm que cortar as unhas bem rentes para não arranjarem mais sarilhos com os outros animais enquanto a lula brasileira, o elefante indiano e o tigre chinês se entendem entre eles passando ao lado dos das unhas compridas sem lhes ligar patavina e dando umas bananas aos macacos africanos que assim se sentem muito importantes por serem alvo das atenções de novos amigos que lhes entraram pelas portas dentro e não reparam que, mais uma vez, nenhum se veste de ave de rapina – o que na verdade também são.
Mais: tudo ficará assim até que . . . tudo continue na mesma e o galo francês possa debicar e esgravatar à vontade, “Doha a quem doer”.
Neste desespero de buraco sem fundo, ouve-se um burrico a zurrar:
Burro português: - Eh pá! Estes tipos não se entendem nem se querem entender. E que tal se nos juntássemos, os animais que nos entendemos em português? Ninguém manda em ninguém à boa maneira das nossas barafundas, cada um faz o que quer, aquecemo-nos debaixo do mesmo Sol e todos ajudam quando houver alguém que precise de apoio . . . Havia de ser giro!
Lisboa, Julho de 2006
Henrique Salles da Fonseca