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A bem da Nação

“GUERRAS CIRÚRGICAS”

 

UM OLHAR SOBRE O MÉDIO ORIENTE E ESTE NOSSO MUNDO

                                                      

  Sobreviverá o Líbano como Estado?

 

       Com o sentimento de quem está a fruir pacatamente a “silly season”, o olhar que me apetecia deitar sobre as paragens do Médio Oriente não é este que o leitor certamente calcula, mas outro bem diferente. Preferia deliciar-me com a imagem de um inebriante pôr-do-Sol sobre o extenso deserto da Arábia, ou com a beleza acolhedora de um oásis da Síria repleto de tamareiras, figueiras e macieiras. Mas principalmente queria confortar-me com uma idílica visão de felicidade e prosperidade estampada numa qualquer cidade do Médio Oriente, em que comunidades de credos diferentes, sunitas, xiitas ou drusos, judeus, cristãos ou protestantes, vivessem finalmente na mais pacífica harmonia, beneficiando do bem-estar proveniente das abundantes riquezas energéticas que Deus, nosso senhor e pai de todas as criaturas, decidiu um dia entesourar nos extensos areais.

     Mas não, abro o televisor e atinge-me brutalmente o choro entrecortado de uma rapariguinha libanesa de 10 anos, única sobrevivente da bomba deflagrada perto do automóvel em que se fazia transportar com sua família. Logo depois, é o olhar alucinado de uma mãe libanesa que queria fugir do inferno com os seus cinco filhinhos e não tinha transporte. O meu coração fica angustiado e, eu que sou agnóstico, ou julgo sê-lo, pergunto: Meu Deus, Jeová, Allah, quem quer que sejais, o que é isto? O que é isto?

      De há uns anos a esta parte, tornou-se paradigma das estratégias e tácticas das guerras contemporâneas o chamado “ataque aéreo cirúrgico” contra alvos de importância crítica para o inimigo, a fim de o desgastar, destruir ou reduzir o seu potencial de combate, ou então amolecer o seu moral e capacidade anímica. Mas este conceito prefigura, acima de tudo, um estratagema que se destina a evitar ou minimizar o emprego das forças terrestres, de modo a acautelar a ocorrência de baixas significativas, dada a normal reacção negativa da opinião pública dos países ocidentais sempre que as baixas atingem proporções volumosas entre as fileiras dos seus exércitos. E com mais clamor quando são guerras “inventadas” ou com propósitos políticos que não encontram acolhimento consensual na sociedade.

      No entanto, se o ataque cirúrgico poupa a vida do soldado porque o preserva do confronto directo com as forças do outro lado, o que estatisticamente significa a probabilidade de baixas volumosas, tem o contraponto de pôr em risco inevitável as populações civis no seio das quais se inscrevem as zonas dos alvos militares. Pois é, nem o instrumento tecnológico é infalível nem a mão e o olho do “cirurgião” podem assegurar uma perfeita operação, donde a consciência geral assumida de que é uma pura falácia negar a ocorrência de riscos e danos humanitariamente inaceitáveis entre quem não é parte activa na guerra. Como vimos em guerras como a dos Balcãs, do Iraque e agora do Líbano, com a maior desfaçatez se vêm bombardeando cidades e povoações sempre que, de antemão, se admite que nelas se acoitam forças inimigas, núcleos importantes da sua estrutura ou alvos considerados remuneratórios. As bombas teleguiadas e lançadas de plataformas aéreas ou terrestres são tidas como inteligentes, no mínimo susceptíveis de identificar com precisão o alvo visado, mas a realidade demonstra que isso nem sempre acontece e basta lembrarmos as numerosas vítimas civis dos bombardeamentos de Belgrado e de Bagdad e atentarmos agora nas do Líbano. Os chamados dispositivos de referenciação e guiamento das armas erram com frequência, as mais das vezes porque o alvo atingido não é o que se pensou ser quando foi identificado e visado. Além disso, nenhuma bomba pode deflagrar sem efeitos colaterais sobre o que habita o seu raio de acção, e o erro de desempenho, como se tem visto, ocorre com frequência porque quem acciona os dispositivos é um homem, um homem com todas as suas limitações de ordem física e psicológica, para não dizer de ordem moral.

      Com esta constatação, podemos então defender a tese de que os anos derradeiros do século XX e o início do século XXI vieram colocar-nos perante uma regressão em termos morais, com a agravante de pôr em causa exactamente as nações que se consideram guardiães da civilização humana. Porque para poupar os seus soldados não hesitam em sacrificar os civis do lado contrário. Ao longo da história, os exércitos se constituíram como braços armados das nações para que pudessem ser eles a fazer as guerras e a sofrer as suas agruras e não a comunidade como um todo, dentro da qual há que proteger os mais vulneráveis e indefesos. Isto quer dizer que se a nação escolhe os homens para a sua defesa, a intenção é não expor ao perigo a comunidade como um todo, acautelando sobremaneira os mais fracos, ou seja, as mulheres, as crianças e os velhos. Isto visto de um lado aplica-se reflexivamente ao outro lado oposto, salvando-se assim o conceito geral de que os soldados existem precisamente para fazer a guerra e, se necessário, morrer nela, em defesa da sua terra e dos seus. Perante este princípio, seria de esperar que o soldado olhasse para os civis do lado contrário com equivalente e retribuível sentimento humanitário. Princípio eivado de grande valor ético-moral, por que não julgá-lo pertença irrecusável da nossa bagagem antropológica? Ah, mas sabemos nós que a guerra é um fenómeno horroroso e que ao longo da história os soldados nem sempre, ou raramente, se comportaram à altura da sua condição de seres humanos.

      Do evolucionismo justo é esperar que o entrelaçamento de factores morais, filosóficos, religiosos e científicos leve o homem a aproximar-se, com o caminhar dos séculos, de uma condição espiritual mais perfeita, mais condizente com a sua racionalidade. Contudo, parece que não é conquista ainda dos nossos dias, a avaliar pelos violentos acontecimentos que têm ensombrado os primeiros anos deste milénio. Estranhamente, apesar do galopante progresso material, parece que estamos a ganhar uma carapaça na nossa sensibilidade, a aceitar passivamente uma perversão dos nossos princípios morais, na medida em que estamos a aprender a conviver com o espectro da desgraça e do infortúnio desde que ele não nos bata à porta. A desgraça humana entra pelo nosso lar dentro através da televisão, mas comportamo-nos como se tudo não passasse de uma realidade virtual. Podem acontecer algumas esporádicas manifestações de repúdio, normalmente promovidas por movimentos políticos desafectos da ideologia dos mandatários das guerras, mas sem atingirem a força e a veemência necessárias, sem que provoquem um grito de alerta que rasgue esta nossa postura acomodatícia e nos convoque a uma profunda reflexão.

A guerra é infelizmente um fenómeno social de que o homem tão depressa não se vai livrar. Mas há que repensar as regras de conduta moral sobre a forma de a fazer.

 

 

                                 Quarteira, 26 de Julho de 2006

 

 

                                   Adriano Miranda Lima, Coronel

     

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