PORTUGAL ABANDONADO
Saído jovem de Portugal rumo a África, o José Gomes Martins acabou por se fixar na Tailândia onde já leva quase 30 anos de paz.
Nesta minha saga do resgate dos “portugueses abandonados”, conheci-o virtualmente nas minhas andanças internéticas em busca dos locais por onde Portugal andou nos tempos do Império e por onde foi abandonando, vivos e mortos, muitos dos que lhe foram fiéis e por ele deram a cara e até a vida. Mas voltando ao José Gomes Martins, falta agora conhecê-lo pessoalmente pois visito-o regularmente no seu “Aqui Maria” (v. http://www.aquimaria.com/html/aboutth.html) e ele é dos mais antigos frequentadores do “A bem da Nação”.
Estranhando-lhe o silêncio, procurei-o certa vez em directo e foi com preocupação que não obtive resposta. Passado mais um silêncio, procurei-o ontem de novo: que tinha vindo a Portugal, que acabara de regressar à Tailândia e que estava a arrumar as suas “coisinhas” na cabeça para retomar a escrita.
Respirei de alívio mas fiquei com pena de não o ter sabido por cá pois havia de o encontrar para falarmos em directo sobre o que tanto nos interessa: Portugal.
Aprazámos encontro em Goa.
Convidei-o a escrever um texto sobre o que vira em Portugal mas respondeu-me que a tristeza o invadiu e que preferia não mudar o sentido da sua vida revelando a mágoa de sentir um país abandonado. Sirvo-me das fotografias que me enviou do seu Planalto Beirão natal para fazer eu a reportagem que o magoaria de mais. Vejamos se enxergo o país que ele encontrou.
Terá sido pelo ano de 1930 que a Câmara Municipal de Mortágua – extremo poente do mesmo Planalto – decidiu electrificar a sede do Concelho e para isso comprou um gerador que funcionava entre o pôr do Sol e a alvorada; terá sido durante as férias escolares desse mesmo ano que o meu Pai fez a instalação eléctrica na casa paterna. Foi já pelos finais da década de 50 que se instalou o abastecimento doméstico de água e se iniciou o saneamento básico, tudo e apenas na sede do Concelho; o abastecimento doméstico só chegou às demais sedes de Freguesia com a primeira Vereação democraticamente eleita depois de 1974 e quanto ao saneamento nada sei porque, felizmente, esse tipo de obras deixou há muito de ser notícia.
Terá sido na década de 50 que foi inaugurado o único Hospital das redondezas sendo que, até então, qualquer caso que não pudesse ser atendido pelo farmacêutico, tinha que ir a correr para Coimbra por estradas bem menos fáceis que as de hoje. Os dois médicos a percorrerem de dia e de noite montes e vales para atenderem gente isolada e indefesa contra os males mais ou menos virulentos que amiúde davam origem à celebração do requiem.
Ou seja, precaríssimo conforto duma população eminentemente rural, praticando uma agricultura de subsistência e com elevados índices de analfabetismo. As crianças abandonavam bem cedo a escola para ajudarem os pais no ganha-pão da família, o pastoreio constituindo a tarefa mais suave que os esperava nas mais tenras idades. Com grande densidade florestal, não era fácil a produção alimentar fora dos lameiros e outras zonas baixas; a fomeca a apertar os estômagos, ávidos duma produtividade agrícola totalmente desconhecida de gerações sucessivas, o gado a viver bem perto das pessoas para aquecer no Inverno com o bafo e outras exalações de ruminança.
As feiras mensais a assumirem um papel importante no aprovisionamento doméstico e a servirem de escoadouro para as magras produções agro-pecuárias com preços formados ao abrigo do método do “sabe Deus como” mas único recurso de ligação à longínqua e, no entanto, imprescindível economia monetária.
Foi deste mundo sem conforto e sem esperança que saíram os inconformados com tal sina. Assim se fizeram o Brasil, Angola e tantos outros países de maravilha. Foi daqui que saiu o José Gomes Martins e foi aqui que voltou para reencontrar a sua própria meninice.
E que viu ele?
Viu aqueles que não ousaram dizer que bastava e que por isso mesmo se deixaram ficar e viu os que tinham modo de vida capaz de sustento sem frio. Mas a esses que viu também passaram os anos por cima só que, como nunca cheiraram a esperança de nova vida, encarquilharam nos horizontes da miopia a que se abandonaram. Para esses, tudo é igual: tanto o Brasil como a Tailândia ou até mesmo França e a América ficam para lá de Viseu . . .
Mas Viseu cresceu mais do que alguma vez sonhou e é hoje um pequeno e harmónico centro urbano que finalmente encontrou a Universidade como a solução para a fixação da juventude e é dessa nova camada de gente educada que está a surgir uma dinâmica social e industrial impensável até há pouco.
Este novo Planalto Beirão está urbanizado em pequenos núcleos que esvaziaram as aldeias vizinhas, não fez evoluir a economia agrária de que estava fartíssimo, decantou-se em duas camadas – os velhos e os novos – e deixou morrer o mundo de antigamente que não era competitivo mas apenas sobrevivente.
Foi este Portugal abandonado que partiu o coração do José Gomes Martins e eu creio que esse é um mundo que não volta mesmo mais.
O meu amigo só poderá encontrar essas aldeias de ruralidade pura e inocente lá nas faldas das montanhas de . . . Chiang Mai.
Esta, uma reportagem de partir corações. Partamos para o futuro.
Lisboa, 23 de Julho de 2006
Henrique Salles da Fonseca