CURTINHAS XVI ...
Ai! Bancos, para que vos quero...
v De tempos a tempos, os Bancos (ora um, ora outro) lá vêm a público queixarem-se de que os utilizadores das ATMs não pagam mais por isso, quando esse serviço custa bom dinheiro (a máquina, a manutenção da máquina, a conta da electricidade, a telecomunicação dos dados, o papel e a tinta dos talões – sem esquecer o custo de mantê-la fornecida de notas). Na esperança, talvez, de que o Regulador por fim lhes dê ouvidos e reforce o cartel – dado que, concorrência à parte, nenhum deles está impedido de cobrar o que entender pelos serviços que presta (deve é ter o preçário bem à vista).
v Imediatamente se levanta um coro de protestos: “Ainda querem ganhar mais!”. É fácil perceber que, daí em diante, a discussão irá girar em torno de dois perspicazes argumentos: a uns, não convém pagar mesmo nada; a outros, umas comissões mais sempre davam jeito.
v Desde já esclareço que estive (em plano muito secundário, note-se) na génese da SIBS (a sociedade que gere a rede de ATMs, sob a denominação Multibanco) e que, então, defendi que cada transacção deveria ter o seu preço. Fui vencido, como é bem de ver, porque os tempos eram de Banca estatizada e, à época, tudo era serviço público (ergo: à borliú). Mais esclareço que considero a rede Multibanco um feito notável, decisivo para a modernização do nosso sistema bancário – só possível porque os Bancos tinham, por esses dias, todos o mesmo dono (uma das boas heranças que a estatização dos Bancos nacionais, em 1975, nos legou).
v Ninguém duvida que a rede Multibanco é, hoje, uma magnífica comodidade – e assim continuará por muitos anos ainda. Por isso, quem a utiliza quer preservá-la tal qual está. E quem a proporciona sabe que reside ali uma fonte de proveitos por explorar (graças à inelasticidade da procura, perdoe-se-me o “economês”).
v Agora, enganam-se os que julgam que nada pagam por isso. Pagam, sim, e não será pouco: (a) no custo da emissão do cartão; (b) nas comissões periódicas de manutenção de conta; (c) e, acima de tudo, porque não vêem adequadamente remunerados os saldos das suas contas bancárias (entre nós, o comércio bancário adoptou, desde cedo, a estratégia dos compadres: “tu nada pagarás por este ou aquele serviço que eu posso vir a prestar-te; e, em compensação, eu não remunero os teus depósitos; fica tudo entre amigos”). Não pagam nada é por cada utilização que fizerem. Só isso.
v Assim como se enganam aqueles que crêem que os Bancos não lucram directamente com a rede Multibanco. Lá vão lucrando: quando um cartão emitido pelo Banco A efectua uma operação na ATM do Banco B, aquele paga a este uma comissão. Uma pequena comissão, é certo, mas que multiplicada por muitas operações gera proveitos que não podem ser ignorados. O que os aborrece, contudo, é o facto de não conseguirem repercutir nos seus clientes, pelo menos, este custo directo.
v Indirectamente, porém, os Bancos poupam custos. A permanente disponibilidade das ATMs liberta-os de vários encargos, alguns bem pesados, no relacionamento com os seus clientes: (a) reduz o número de cheques a manipular – e o custo total de emitir, entregar ao cliente, processar na Câmara de Compensação, contabilizar e arquivar um cheque é muito elevado (talvez € 3/cheque), ainda que os Bancos recuperem parte deste custo ao facturarem (alguns com mão pesada) os livros de cheques; (b) são os próprios clientes a “carregar” as suas ordens de pagamento e transferências – logo, menores custos administrativos e menores riscos operacionais (ainda que desfazer os erros dos clientes também dê o seu trabalho); (c) descongestiona as Agência bancárias, que passam a poder assegurar a mesma cobertura do mercado com menos área e menos pessoal – logo, menores investimentos e menores encargos com a estrutura administrativa.
v No cômputo final, quem sai a ganhar, e quem sai a perder? Não sei. Mas sei a quem uma rede de ATMs eficiente aproveita: ao sistema de pagamentos – do qual todos, Bancos e clientes, beneficiam.
v Imagine-se, por uns momentos: (a) que cada operação nos ATMs tinha um custo directo para o utilizador; (b) que a generalidade das pessoas considerava esse custo excessivo; (c) e que, por isso, só em desespero de causa os ATMs eram utilizados. Como teria de ser configurado o sistema de pagamentos para não se tornar num entrave à actividade económica?
v De volta aos cheques, sem dúvida. Com os Bancos a reviverem épocas passadas, mas com uma economia mais pujante – e mais exigente. Consequências imediatas para eles: (a) mais risco operacional (ou seja, maior probabilidade de algo correr mal nas tarefas de back office e daí resultar um prejuízo); (b) mais investimentos em Agências; (c) maior estrutura e maiores encargos; (d) mais cheques sem provisão, mais litigância, maiores custos de cobrança coerciva e mais perdas por impossibilidade de cobrança; (e) provavelmente, uma ligeira quebra nos depósitos; (f) em suma, maiores necessidades de capital.
v E, certamente, de volta às notas. Maior procura de notas – sobretudo, as que têm um valor facial mais elevado – que passariam a representar o grosso da liquidez que qualquer um de nós mantém para poder fazer umas compras (por motivo transacção, diz-se em “economês”) ou para qualquer imprevisto (por motivo precaução, idem). E com isso: (a) mais falsificações (e contrafacções); (b) maior incentivo à marginalidade que necessita de meios de pagamento que não deixem rasto (o que é o caso das notas) para poder actuar com impunidade; (c) mais insegurança (o facto de as pessoas passarem a trazer com elas, ou a guardar em suas casas, mais dinheiro em notas é uma tentação para os “amigos do alheio”); (d) mais economia subterrânea, alimentada por uma elevada circulação fiduciária (isto é, notas); (e) maior convite à evasão fiscal, pois comprar e vender com notas na mão é a regra de ouro de quem não quer pagar impostos.
v Mas, mais notas em circulação significa, também, para quem as emite (o Banco de Portugal/BdP) custos acrescidos: (a) não só terá que imprimir e manter em circulação um maior número de notas por valor facial; (b) mas terá também que distribui-las e recolhê-las mais amiúde; (c) na certeza de que cada nota durará menos tempo (nada estraga mais uma nota do que andar de bolso em bolso). Com a agravante de aumentar a incerteza sobre o volume de moeda (M1 em “economês”) efectivamente em circulação (por força do motivo precaução, e do entesouramento que ele arrasta) e de complicar as demasias (a consabida falta de trocos, que a literatura conhece por “problema do tesoureiro”).
v Com isto quero dizer que esta polémica em torno dos ATMs – política monetária à parte – é, antes do mais, uma questão de eficiência do sistema de pagamentos e, por aí, de segurança (no sentido mais amplo do termo, para abranger pessoas e bens) e de eficácia fiscal. Quem diria.
v Quero dizer também que, para todos nós que não somos Bancos, o actual sistema de pagamentos peca, não pelos aspectos técnicos (que são bastante bons), mas por uma série de outros pontos, igualmente fundamentais: (a) falta transparência à sua estrutura de custos; (b) falta coerência no modo como articula os instrumentos que o integram; (c) falta segurança jurídica a alguns desses instrumentos; (d) falta ainda consistência a um leque de soluções que foram surgindo ao sabor das conveniências, ou da imaginação, deste ou daquele Banco comercial.
v E mais digo que, quem tem por missão criar e manter, eficiente e seguro, o sistema de pagamentos cá do sítio, o BdP, pouco tem feito por isso. Se não fossem os Bancos comerciais . . . (continua)
Lisboa, Julho de 2006
A. Palhinha Machado