CRÓNICA 24 - 30 MAIO – 1 de Junho 2006
Porque é que há guerras tribais em Timor – V
Chrys Chrystello
John Taylor, no seu livro “Timor - A História Oculta”, p. 59, explica o seu ponto de vista, citando José Martins (líder do Kota):
"Relatórios sobre o grau de envolvimento indonésio na rebelião variam consideravelmente, alguns argumentando mesmo que os catorze oficiais eram agentes directos do Governo indonésio, enviados certamente para organizar o derrube da Administração colonial. O que parece mais provável é eles terem sido líderes locais, verdadeiros dissidentes, que tentaram mobilizar o descontentamento local como meio de refazerem a sua base, em Timor-leste. O que é inquestionável é que eles foram ajudados tanto pelo Cônsul indonésio em Díli, como por apoiantes em Kupang, no Timor indonésio, os quais tinham concordado em fornecer armas. Estes factos indicam, no mínimo, que já existia um lobby integracionista que tinha o apoio, a certo nível, do Governo indonésio."
Aliás, as consequências desta "aventura" foram mínimas para os instigadores indonésios, que foram apenas expulsos. Como sempre aconteceu e pelos vistos continua assim ainda hoje, os timorenses envolvidos é que foram carne para canhão, tendo sido mortos, deportados, presos e sido "premiados" com a presença da PIDE em Timor a partir desse momento.
Por seu turno, James Dunn (Timor: A people betrayed, The Jacaranda Press, 1983, pp. 33-34) declara enfaticamente:
“É altamente improvável que o Governo indonésio esteja implicado, ou que soubesse mesmo o que se estava a passar. Tudo começou com um barco carregando catorze sobreviventes indonésios do movimento “Permesta”, um dos grupos da chamada “Revolta dos Coronéis” contra o Presidente Sukarno e o Governo central, comandada pelos coronéis Lubis, Kawilarang, Simbolon, Hussein, Warouw e Sumual. Os refugiados aportaram a Timor Português provavelmente vindos do sudeste das Celebes (Sulawesi) onde a força principal da resistência militar tinha sido aniquilada pelas forças do Governo central. Buscaram asilo político em Timor Português e, a seu tempo, foi-lhes autorizada a permanência na zona de Baucau. Contudo, os indonésios rapidamente se aperceberam de que o sistema colonial português não lhes agradava e começaram a semear intriga a dissidentes timorenses na zona de Viqueque – Ossú, Baucau, Uatolari e mesmo em Díli, numa tentativa de destronarem o poder colonial. Os asilados obtiveram também o apoio do Cônsul indonésio em Díli, que, parece ter agido sem o conhecimento e o consentimento de Djakarta. O que se passou foi que a amante rejeitada dum dos principais conspiradores divulgou o planeado golpe à Polícia em Díli e foram tomadas as devidas contra-medidas. Contudo, registaram-se violentos confrontos nos distritos de Ossú, Viqueque e Uatolari nos quais cinicamente os portugueses utilizaram tropas de 2ª linha de reinos vizinhos que eram tradicionalmente hostis aos rebeldes timorenses, tendo a oposição sido prontamente aniquilada duma forma sangrenta. Mais de 150 foram mortos e centenas feitos prisioneiros. Sessenta timorenses foram exilados para Angola e Moçambique e, a seu tempo, os dissidentes indonésios expulsos de Timor. O Cônsul foi chamado e repreendido pelo seu envolvimento. Os Indonésios reclamaram a sua inocência ou qualquer envolvimento no conluio de 1959, mas os portugueses que pouco ou nada sabiam da insurreição em Sulawesi desconfiaram. Parece no entanto haver poucas dúvidas de que se tratou duma iniciativa local dos fugitivos da Indonésia Oriental que foram capazes de explorar o descontentamento com a Administração local. O conluio foi provavelmente demasiado amador e, mesmo que não tivesse sido descoberto, provavelmente não teria tido sucesso em desalojar os portugueses. Contudo, o incidente teve profundas implicações nas autoridades locais e nos Portugueses em geral, dado coincidir com uma intensificação da campanha do Presidente Sukarno contra o imperialismo e colonialismo. Os portugueses reagiram com um aumento da sua capacidade de segurança na Província e na fronteira e com o aumento da Delegação da PIDE. Contudo o incidente não se repetiu. Havia disputas fronteiriças de tempos a tempos, normalmente causando algumas baixas ou perdas de vida, mas normalmente tratava-se de confrontos derivados de roubo de gado ou de disputas tribais envolvendo os dois lados da fronteira. Sempre que um incidente desses ocorreu, causava tremenda inquietação em Díli e especulação duma intervenção indonésia. Um dos pontos mais altos desse nervosismo ocorreu em 1962 quando os holandeses finalmente cederam a Irian [Papua] Ocidental à Indonésia. Era temido que Timor-leste fosse o próximo alvo de libertação, mas a campanha “ganyang malaysia (esmagar a Malásia) ”veio trazer uma nova dimensão e proporcionando o alívio à administração colonial [portuguesa].”
Esta também a versão dos eventos de que me servi no livro “Timor-leste o dossier secreto 1973-1975” mas que como se vê é bem diferente da do ex-Governador Themudo Barata.
Depois desta longa visita ao passado, do fim do século XIX a meados do século XX, parece difícil atribuir os incidentes de Abril 2006 a conflitos tribais, dado que eles parecem ter-se esgotado em Junho 1959, sem qualquer registo posterior de lutas inter-tribais. O poderio dos régulos e liurais esmoreceu e já em 1975 era pouco mais do que simbólico. A divisão administrativa colonial portuguesa fizera esbater esta tradicional divisão dos povos de Timor e, posteriormente, com a ocupação indonésia parece ter-se esfumado de vez. O que não desapareceu porém foi a animosidade ancestral entre o oeste e o leste, tanto mais que agora surge enriquecida pela dicotomia de resistência activa contra a Indonésia representada pela Falintil e pelos povos de leste contra os povos de oeste, associados ao colaboracionismo com o invasor. Desde a proclamação da independência que se ouvem queixas dos antigos guerrilheiros e aqui cremos que o Estado falhou totalmente por menorizar estas queixas e deixá-las latentes nos milhares de soldados guerrilheiros compulsivamente passados a uma reforma sem benefícios fiscais ou económicos e sem ocupação ou treino para ocuparem a sua posição dentro da nova sociedade democrática timorense. A má divisão da atribuição dos postos de comando e chefias militares a pessoas Loromonu em detrimento dos Lorosae tem ab initio um certo fundamento nas queixas que motivaram os incidentes que levaram em Fevereiro à saída de mais de 500 militares, prontamente demitidos por abandono do cargo. Cremos que o Governo subestimou a real dimensão do problema e se serviu duma legitimação legalista para a levar a cabo sem se aperceber da caixa de Pandora que poderia estar a abrir. Houve inacção e incúria e até uma certa forma sobranceira de tratar o problema. O Presidente Xanana depois de ouvir os descontentes mostrou que estava a favor doutro tipo de solução, mas o Governo permaneceu mudo e firme na sua decisão de não os reintegrar. Até aqui verificaram-se dois factos apenas: descontentamento por origem étnica e por motivos de privilégio aos Loromonu.
Não havia ainda de facto nenhuma tentativa de golpe de Estado. Só quando os auto-proclamados líderes militares rebeldes (ou meramente desertores?) intensificam as suas exigências após a criação duma Comissão de Inquérito e pedem a cabeça do Governo ou a demissão do mesmo, obviamente com o apoio de forças externas como foi dito por Mari Alkatiri, se pode começar a falar de tentativa de golpe de Estado. O plano B certamente apoiado pelos EUA, Austrália e outros confiava que a candidatura do Embaixador José Luís Guterres tivesse um amplo apoio das bases da Fretilin, o que não aconteceu. Foi um fracasso total e veio reforçar ainda mais a liderança do Primeiro-Ministro (sempre tão odiado pela Austrália que jamais lhe perdoa as duras negociações para a exploração do petróleo e a sua firmeza em não abdicar duma linha de crescimento económico lenta mas segura). Nesta altura já as tropas australianas estavam em fase adiantada de preparativos para uma “invasão pacífica” de Timor a pedido deste jovem país. Não se contesta que as coisas chegaram a um ponto em que era forçoso pedir a ajuda do exterior para terminar com os conflitos entre Exército e Polícia, ao longo das mesmas margens de divisão que atrás se mencionaram. A rapidez da chegada das tropas australianas só veio comprovar que o seu estado de alerta para intervir se tinha precipitado com a vitória esmagadora de Mari Alkatiri no Congresso da Fretilin.
Nesta ocasião esperava-se muito mais do sábio Xanana que se limitou a uma ou outra pálida intervenção e preferiu manter-se na sombra, em vez de vir a terreiro clarificar as águas. Sei que muitos em Portugal atribuem a Xanana qualidades mais próprias dum santo do que dum ex-guerrilheiro mas decerto a maioria não estava preparada para o ver apenas como um homem, como ele veio a demonstrar ao longo desta fase do conflito.
Por seu turno, quem não perdera tempo a demarcar-se e a criticar o Governo foi Ramos Horta, esse sempre ambicioso líder timorense para quem o cargo de Secretário-Geral da ONU é o mínimo a que se acha com direito. Manobrando os bastidores e, posteriormente avistando-se com os militares revoltosos e traidores ao seu juramento perante o Estado, veio a conseguir preencher o vácuo de Xanana e a intransigência do Governo.
Nessa altura já toda a máquina da desinformação da comunicação social australiana cujo interesse no petróleo não pode ser descurado, aliados à sua velha antipatia por Mari Alkatiri, estava pronta a levar a tentativa de golpe de Estado a uma fase mais avançada. E aqui entra o elemento indonésio até então silencioso: os jovens armados de catanas e armas ligeiras a repetirem as façanhas de 1999, pegando fogo a casas, roubando documentos das Repartições (sabendo bem o que queriam como por exemplo as provas que implicavam o general Wiranto nas atrocidades de então) e criando o pânico em vários bairros da cidade de Díli.
A história do petróleo e a prisão de Eurico Guterres podem ter mais a ver com isto do que a mera antipatia que todos parecem agora sentir contra Mari Alkatiri.
Depois, temos de juntar os interesses geo-estratégicos que já estiveram no cerne da invasão de 7 Dezembro de 1975 e o petróleo. Houve 21,5% de apoiantes da integração na Indonésia e esses estão insatisfeitos com a independência, com a política de Alkatiri que (eles nunca viram como seu, já o não viam como seu em 1973...) apesar desta ser elogiada por Paul Wolfowitz (que não é nenhum santo...embora também não seja como Kissinger ou Ford em 7 Dez 75). Estes 21,5% da população revêem-se mais em Eurico Guterres e não é coincidência estes ataques surgirem logo após aquele ir para a cadeia. Há ainda militares e uma pequena franja política indonésia que apoia Guterres e não perdoa a independência e há muitos timorenses desejosos de os ajudar. Foi pena que os líderes (Alkatiri, Horta, Xanana e Roque Rodrigues) não tivessem visto isto a aproximar-se como um tsunami e pensassem que eram apenas umas ondas que a nova democracia resolveria...
FIM DA 5ª PARTE