Curtinhas XIII....
O QUE A ESCOLA NOS ENSINA
v Em 2005, o galardão mundial da melhor escola de MBA foi atribuído à Universidade de Navarra.
Universidade de Navarra, edifício principal, Pamplona
v Como? Perguntaram muitos, sem poderem esconder a surpresa. Não sei exactamente como, mas suspeito que o facto desta universidade pertencer à Opus Dei não deverá ser estranho ao sucesso. Não, não por razões confessionais, nem por obra e graça do Céu. Bem mais prosaicamente, porque quem lá manda não são os professores. É, sim, o aparelho fortemente disciplinado desse movimento religioso, que sabe que alunos quer, o que quer para eles, o que quer deles e como o fazer.
v Ocorreu-me esta efeméride quando assistia a mais umas querelas sobre o nosso sistema de ensino básico e liceal. Por cá, todos constatam que as coisas há muito que não vão bem. Todos diagnosticam maleitas. Todos prescrevem mezinhas de efeito garantido. Todos opinam - e tudo continua mal há décadas. Pois então eu também vou opinar.
v Entre nós, o ensino é predominantemente público. E o ensino público organiza-se em torno de ideias simples: (i) cada aluno tem acesso garantido à escola pública que serve a sua área de residência (mais propriamente, a do seu encarregado de educação ou de quem passar por tal) – e só a essa; (ii) a escola é para ser gerida pelos seus professores – e só por eles; (iii) o Ministério fixa, lá do alto, para valerem em todas as escolas sem excepção, parâmetros de funcionamento rígidos, curricula e o modo como se avaliará os conhecimentos dos alunos - mas deixa aos professores a liberdade de escolherem os livros de estudo que melhor lhes aprouver, formarem turmas e fixarem horários.
v A tónica de tudo isto recai, como é evidente, sobre a oferta (o ensino) e, mais ainda, sobre o agente que a assegura (o professor). Por isso, a administração pública impõe pessoas e instalações – e diz como quer que se faça. Mas não verifica, a seguir, caso a caso, se tudo se passou como ela disse querer – nem se quis bem. E só há pouco começaram a ser dados uns passinhos tímidos no sentido de verificar, junto dos alunos, o que foi feito, e se houve razão para ser feito assim. As mais vocais associações de professores, essas, naturalmente, não simpatizaram nada com a novidade.
v O que mais me intriga é que, neste assunto, propostas e contrapropostas giram sempre à volta do mesmo consagrado, intocável esquema: escola pública, professores, funcionários públicos, com a administração pública (por cá diz-se “o Estado”, mas trata-se de um lapso conceptual nada inocente) a reger a orquestra. Privados, só os alunos. Ah! E os livros escolares.
v Há algo de genético nesta forma muito nossa de abordar os problemas de dimensão nacional – a qual, diga-se em abono da verdade, não é de hoje. Vejamos o quê.
v Não é o conhecimento um elemento estruturante das sociedades modernas? É. Logo, o ensino só pode ser uma incumbência do Estado (até aqui, sem comentário).
v Mas a conclusão ganha, entre nós, um sentido muito particular: se incumbe ao Estado, há que confiar a funcionários públicos, seja lá o que for. E quem não tenha vínculo laboral ao Estado, é fatal, está a mais. Começa assim o silogismo que confunde Estado, no sentido de uma nação que se organiza em função de rumos claramente traçados, com o alter ego da administração pública.
v Ora, falar-se entre nós de funcionários públicos é invocar uma hierarquia rígida, tipo tropa, onde o que está em cima é sempre, por definição, mais sabedor, confiável, diligente e competente do que o pobre que estiver um degrau abaixo. Em comum, apenas duas coisas: (i) nenhum deles, em cima ou em baixo, se considera na obrigação de prestar contas (ainda que ligeiras, displicentes e superficiais) àqueles outros que, por negaça do destino, não tiveram a dita de entrar para a função pública; (ii) ambos têm o futuro assegurado, com melhor ou pior passadio.
v E o silogismo completa-se: é ele que vai colocar a tónica da questão na oferta. E é esta tónica que vem justificar a assimetria entre o agente, aquele que provê, e o destinatário, aquele que é provido. Como se todos ficassem submetidos à hierarquia da administração pública: uns, os agentes, em cima; outros, os destinatários, em baixo.
v Temos assim que, na politologia lusa, a escola só é concebível enquanto peça do aparelho administrativo do Estado, submetida a uma centralização de espartilho (não se confunda hierarquia formal com disciplina funcional!) e tripulada por quem, já despreocupado quanto ao seu futuro, acha de todo inútil dar, de tempos a tempos, umas quantas satisfações à puridade. Afinal, não são eles, os professores, a face do Estado para o ensino e o conhecimento? Como ousar disputar a vontade do Estado, ou pôr em causa os seus excelentes propósitos?
v É sabido que o silogismo não se circunscreve ao ensino: na saúde, na conservadoria dos registos, na elaboração de estatísticas, até nos transportes, só para dar uns quantos exemplos, fazemos uso dele com largueza.
v Mas, estranhamente, não é que permanece arredado de outras tarefas igualmente essenciais para qualquer nação que se preze, como sejam o fabrico do pão e o cultivo dos primores? Para desespero de muitos padeiros e de não menos agricultores que, certamente, apreciariam ter no dinheiro dos contribuintes a certeza do seu salário e da sua reforma, e não ter que dar satisfações a ninguém, menos ainda aos seus clientes. Ou seja, também eles não desdenhariam ser funcionários públicos “à portuguesa” – sorte que bafejou os professores e uns quantos mais.
v Este silogismo, que nos acompanha desde os alvores do regime liberal, mantém-nos até hoje mergulhados no clima típico das monarquias absolutistas, com a administração pública a posar como soberano iluminado. E, por causa dele, o Estado (isto é, todos nós, portugueses) tem sido obrigado a engordar (pagando nós) o seu aparelho administrativo, no convencimento de que só assim funções imprescindíveis poderão ser adequadamente preenchidas. É possível que sim, é possível que não. Excepção feita às tradicionais funções do Estado, esta, decididamente, não é matéria em que haja uma só receita, como o silogismo insinua.
v É claro que o silogismo serve às mil maravilhas a dois grupos de cidadãos: (i) os que vêem nele a via ampla para entrarem na função pública e colherem sossegadamente os respectivos frutos até ao final das suas vidas; (ii) e os que se propõem fazer o bem com o dinheiro dos contribuintes. Completado o silogismo, assim se fecha o ciclo de interesses que o tem sustentado, acarinhado e multiplicado.
v Acontece que o silogismo rasga uma clivagem no modo de pensar, dando a todos traços de esquizofrenia. No plano individual, estou em crer que uma boa maioria dos professores se preocupa, genuinamente, com que os alunos aprendam, e bem. Colectivamente, porém, esses mesmos professores, ao considerarem-se o alfa e o ómega do sistema de ensino, querem só para eles próprios. Justamente aquilo que, ao que sei, a Universidade de Navarra não tolera.
Lisboa, Junho de 2006
A. Palhinha Machado