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A bem da Nação

ALI BABA E OS . . .

 Imagine-se o Parque Meyer com as suas pequenas casas de rés-do-chão e primeiro andar semelhantes às dos cenários das Revistas à Portuguesa, com recheio de comerciantes da Feira do Relógio em dia de S. Martinho na Feira da Golegã. Quem conseguir fundir estas imagens, percebe o que é o Souk de Marraquexe. Mais: a Praça Djemaa El-Fna pode fingir ser o Arneiro da nossa Feira do Cavalo pois é por lá que todos passam mesmo que lá não tenham nada que fazer.

 

Aportuguesado o cenário, passemos a coisas mais reais.

 

Marraquexe tem cerca de um milhão e meio de residentes e como o nome da cidade significa “passa depressa”, consta que há mais um milhão de passantes em permanente movimento.  Pintada de ocre e de vários tons de rosa, a cidade nova tem um urbanismo de fazer inveja a quem não tenha tanto espaço mas em compensação a parte antiga assemelha-se a linha metida em bolso e é aconselhável fazermo-nos acompanhar de Guia que de preferência nos indique e explique os locais a visitar.

 

E se acerca da cidade nova nada de muito especial tenho para dizer, já da parte antiga me ocorre referir a opacidade do mercado que por ali se faz.

 

Recordemos o princípio fundamental: diz-se que um mercado é transparente quando todas as pessoas em qualquer lugar e em qualquer momento podem saber a cotação do produto em referência. Por exemplo, aqui em Lisboa, eu posso saber o preço do algodão hoje praticado em Nova Iorque porque o produto é standard e as cotações de Venda, Compra e Efectuada são publicitadas.

  No Souk de Marraquexe temos que afinar o olhar para distinguir alguma coisa no meio da confusão

No Souk de Marraquexe e na sua “porta de entrada”, a Praça Djemaa El-Fna, transacciona-se uma infinidade de quinquilharia que nem os chineses das lojas dos 300 conseguem ultrapassar e, portanto, não há uma referência para qualquer hipótese de standardização. Mas o método de formação dos preços é típico e tudo se processa sensivelmente assim:

 

  • O eventual comprador sonhou olhar para um produto? Logo o comerciante o tenta cativar da forma mais exuberante que o decoro permite em público;
  • O candidato a comprador ousa perguntar quanto custa o produto e o comerciante avança com uma exorbitância que faria qualquer europeu no seu perfeito juízo seguir caminho para outras paragens. Mas não: o potencial cliente oferece metade (ou menos) do preço inicialmente pedido;
  • A partir daqui assiste-se a uma cena extremamente dramática que nos faz crer na desgraça que o comprador quer lançar sobre toda a família do infeliz comerciante . . .
  • . . . até que, depois do cliente ter simulado várias desistências e  subido alguma coisa na oferta inicial, num repente, o comerciante faz um grande sorriso e se prontifica a fechar negócio;
  • Desaparecido num ápice o enredo dramático, faz-se a transacção e cada uma das partes passa para outra cena semelhante na mesma ou noutra banca.

 

Este método é válido para uma laranja amarga, para um pó contra o mau-olhado, um molho de coentros, um burro, uma lamparina ou para um camelo. Não andei nos transportes públicos pelo que não sei se o bilhete do autocarro tem preço negociável mas a visita à cidade numa das inúmeras caleches disponíveis dá para imaginar que de início nos querem vender a parelha de cavalos, a carripana e talvez mesmo o súbdito marroquino mão-de-rédea.

 

O raciocínio básico neste método deve ser sensivelmente assim:

 

  • Deixa cá ver se consigo enganar este “papalvo” que aqui anda às compras, pensará o vendedor;
  • Deixa cá ver se consigo “esmifrar” este especulador, pensará o comprador.

  Aínda sopesei a "mercadoria" mas não cheguei a acordo no preço

Ou seja, se assim for, o método tem uma base de desconfiança mútua, de dupla venalidade e pura especulação e não é por se desenrolar no meio de uma multidão que faz com que o mercado funcione: no quiosque ao lado pode estar a decorrer uma negociação para um produto idêntico e o preço final fechar num nível diferente. Mais: o comprador não divulga o preço que pagou com receio de passar por ingénuo; o vendedor não revela o preço que recebeu para não correr o risco de a sua própria família o considerar um perdulário.

 

Ao contrário do que se passa na nossa Feira do Relógio, não há ninguém que anuncie os preços e as bonificações (leve 50 e pague 25) ao megafone pelo que tudo aquilo não passa de um amontoado de vendedores e compradores em vez de constituir um mercado. E como parece que é assim em todo o mundo muçulmano, então vamos ter que pensar um pouco antes de tentarmos vender-lhes nem que seja um alfinete de dama.

 

Mas não faltará quem me diga: «Oh fulano, aquilo é uma civilização diferente . . .» Ao que eu respondo: «Claro, é a civilização dos companheiros do Ali Baba ! ».

 

Marraquexe, Junho de 2006

 

Henrique Salles da Fonseca

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