ARGÂNIA
Argânia foi nome que me fez imaginar tágides e outras ninfas lá do Pireu, de Creta, de algum recanto do Olimpo ou mesmo do Walhalla mas, pensando melhor, cheguei a admitir as brumas de Avalon como melhor morada para tanta puridade . . . até que cheguei aos arrabaldes do deserto do Sahara e me deparei com a científica “argania spinosa” militantemente mordiscada pelas cabras dos rebanhos berberes.
Quando a olhei pela primeira vez, vi claramente que não era uma oliveira mas deixei passar mais alguns quilómetros da estrada de Marrakesh para Mogador – para ter a certeza do que estava a ver – e só então perguntei ao motorista de que árvore se tratava. Fiquei na mesma com a resposta que obtive mas consegui recobrar o interesse quando parámos um pouco mais à frente numa casa à beira da estrada onde se podia ler que se tratava da sede de uma cooperativa feminina berbere destinada à transformação do fruto da argânia.
Já lá estava um autocarro de ruidosos turistas gregos pelo que a azáfama era grande em curto espaço mas logo uma jovem quase ocidentalizada se nos apresentou como guia e explicou que o objecto da cooperativa consistia na criação de um modo de vida para as cooperantes, divorciadas ou viúvas berberes, através da produção de inúmeros derivados da argânia, desde comestíveis líquidos, pastosos ou sólidos a cosméticos e unguentos medicamentosos úteis na cura de maleitas tão variadas como o acne, a impotência, a esterilidade, os calos ou a caspa. Não fiquei com grandes dúvidas de que se tratava de autêntica “banha da cobra” mas mantive o ar tão sério e respeitador quanto as circunstâncias aconselhavam e experimentei um delicioso mel, uma geleia e uma pasta amanteigada que me agradaram às papilas gustativas . . . e a outras glândulas não me refiro.
Foi já depois de deglutir tão refinados ágapes que ouvi a explicação do processo produtivo e fiquei a saber que a argânia é de facto espinhosa pelo que só as alimentarmente exigentes cabras se dão ao trabalho de lhes mordiscarem frutos e rebentos. Mas este simpático cornúpeto tem um agente gástrico que impede a digestão do caroço do fruto pelo que este é expelido pelo final do tubo digestivo já sem polpa e considerado em condições de recolha manual pelas cooperantes viúvas e divorciadas dentre as estrumeiras dos diferentes rebanhos das redondezas. Ou seja, em boa verdade, a matéria-prima de que tratamos é um subproduto do estrume caprino sub-sahariano e eu tinha acabado de comer daquilo . . .
Mas que povo tão diferente dos árabes, este verdadeiro mouro, o berbere. A começar por que as mulheres não tapam a cara - a não ser como defesa das tempestades de areia – passando pela palavra cujo conteúdo não se negoceia até à decisão de acabarem com o analfabetismo e passarem a escrever a sua língua em caracteres ocidentais. Dizem-me que a transposição desta língua para a escrita parte do zero pois o povo era todo analfabeto e, portanto, a escrita inexistente e a gramática completamente desregulada. Bastante mais épico do que com o galego amordaçado por Franco.
Mas a simples existência desta cooperativa – e de outras que vimos ao longo da estrada – mostra à saciedade o inconformismo feminino berbere de subjugação à arbitrariedade masculina. Não deu para averiguar se estas mulheres aceitam o fatalismo do destino como a generalidade da Fé muçulmana determina mas este exemplo cooperativo não deve dar muito conforto aos habituais ditames dos imãs. Dá para nos perguntarmos até que ponto não está aqui uma centelha de rebelião e se a futura ordem social não será finalmente menos misógina que a actual.
Foi com estas questões na ideia que me deixei guiar pela estrada fora e nos acercámos de Essauiria, a nossa antiga Mogador. Sim, fui lá à procura de portugueses abandonados . . .
Marrakesh, Junho de 2006
Henrique Salles da Fonseca