curtinhas XII....
Bem haja a lei do terço
v Uma quota mínima de mulheres em qualquer lista partidária que se preze é, sem sombra de dúvida, tudo o que nos fazia falta para sairmos da cepa torta. Bem hajam, pois os nossos deputados.
v Não se percebendo bem se semi-concordante, se totalmente discordante, o Senhor Presidente da nossa República resolveu apontar, com precisão cirúrgica, o seu niet político a um, e um só, dos artigos de tão imprescindível lei. Bem haja, por isso, o nosso Presidente.
v Quem sou eu para duvidar da oportunidade de tudo isto. Mas não vi ainda ninguém suscitar outras questões de não menor calibre.
v Por exemplo, que esta imposição de quotas por género é a negação mais absoluta dos alicerces da democracia – onde cada um (homem ou mulher) vale por si, independentemente das suas particularidades: se é loiro, moreno ou de outra cor qualquer; se sabe ler, ou é analfabeto; se aprecia Saramago, se cultiva os clássicos, ou se lhe puxa o pé mais para a literatura chic; se estremece à ideia de que algures, numa longínqua mata, um arbusto possa ser arrancado cerce, ou se deixa lixo por onde passa; se se empanturra com papas de serrabulho, ou se, qual lagarta de couve, só se alimenta de vegetais biologicamente puros; se fuma como uma chaminé, ou se cuida do seu corpinho até ao exagero de Narciso; e por aí adiante.
v Não mais. A partir de agora, está visto, há que ter em conta os “atributos”. E mesmo à contre-coeur, as listas partidárias terão de reproduzir, em escala pequenina, o peso de cada um desses atributos na mescla da sociedade lusa: x% disto, y% daquilo...como se fosse uma receita de cozinha.
v E assim, aos poucos, os bem-pensantes, os politicamente correctos lá vão transformando a Assembleia da República numa Câmara Corporativa – em que as Novas Corporações são, agora, essas coortes de indivíduos que partilham o mesmo atributo, e em que os atributos a ter em conta serão aqueles que os tais bem-pensantes entendam exigir para que o processo legislativo tenha, segundo eles, representatividade (leia-se, legitimidade) bastante.
v Que a ninguém tenha ocorrido que um mesmo atributo pode abrigar (e frequentemente abriga) perspectivas pessoais muito diferentes quanto a objectivos nacionais, rumos políticos, formas de organizar o Estado, modos de governar, enfim, quanto ao objecto da actividade parlamentar – eis um mistério que ficou por resolver.
v Mais estranho ainda é que não se tivesse estendido a imposição até lá mesmo onde as candidaturas são congeminadas: os directórios partidários. Novo mistério por desvendar.
v Mas a primeira pergunta que vem à ideia é bem capaz de ser esta: o que é que falta ao nosso processo legiferante e de decisão política que só as mulheres poderão suprir? Sem resposta.
v Há mulheres, desejosas de fazer uma carreira na política, que se vêem preteridas e discriminadas pelos aparelhos partidários? Se há (para lá de Helena Roseta), porque é que essas vítimas não têm vindo a público fazer as suas denúncias? Sem resposta, também.
v Com a “lei do terço”, mesmo expurgada do tal artigo que feriu a sensibilidade política do nosso Presidente, o que vejo é: um grupo de mulheres, amigas, primas, parentes dos “barões partidários”, a sujeitarem-se estoicamente a um serviço cívico razoavelmente remunerado (e a fazerem o seu tirocínio para lugares de melhor passadio); mais intelectos juristas, sociólogos e afins a tratarem calmamente da sua vidinha pelos corredores de S. Bento (ou seja, mais do mesmo, com pequenos transtornos mensais de permeio); e, posto que a lei ficou à porta dos partidos, ainda maior influência dos tais “barões” sobre o seus aparelhos partidários (assunto que não me apoquenta por aí além) – mas, acima de tudo, sobre o processo de decisão política (e isto, sim, já me assusta sobremaneira).
v Em defesa da “lei do terço” agita-se o exemplo das democracias nórdicas. Excelente exemplo.
v Mas porquê não trazer para cá, também, o fundamental? Há por lá eleitos que continuam a exercer pacificamente a sua advocacia, a sua consultoria jurídica, no intervalo das sessões parlamentares? Há por lá deputados que representam publicamente interesses privados, sem rebuço de negociarem com o próprio Governo, ou com a burocracia estatal? Há por lá normas que visam disciplinar os conflitos de interesses, mas que não prevêem a prestação de contas, individual e pública? Há por lá textos normativos retocados já depois de votados, para ficarem mais a gosto deste ou daquele?
v Apesar de tudo, não tenho mau perder. Se, como por aí se disse, o que faltava à “lei do terço” para ser uma excelente lei era um mecanismo sancionatório límpido, justificável e eficaz – aqui vai a minha sugestão: reduzir a subvenção orçamental (aquela que é atribuída aos partidos, em função do número de deputados que façam eleger) no pro rata do défice de género (já que não serão só as mulheres a merecerem uma “contagem de protecção”) que as listas de candidatos evidenciarem. Complicado? Nem por isso.
v Exemplo: (i) a lista só tem 20% de mulheres (ou de homens, por um raciocínio em tudo idêntico); (ii) o défice de género é, assim, de 13% (=33%-20%, aproximadamente); (iii) a sanção (exclusivamente pecuniária, para não atrair a má vontade do nosso Presidente) consistiria em retirar 13% à subvenção que correspondesse ao número de eleitos nessa lista (ou seja, esse partido apenas receberia 87% da subvenção até hoje paga por inteiro).
v É claro que esta regra exige alguma matemática – não sendo de esperar, à vista de tantos e tão preclaros exemplos, que o nosso legislador (ele mesmo lídimo representante do que seja o nosso aluno liceal médio) encontre facilmente o caminho. Eu ajudo, sem levar nada por isso.
v Antes do mais, ter-se-á que especificar uma regra de arredondamento: 1/3 do que seja nem sempre dá conta certa; e o défice de género pode, muito bem, vir expresso num número com muitas casas decimais, algo difícil de manejar.
v Depois, há que traduzir a regra sancionatória num algoritmo de cálculo simples:
Seja X a proporção de um dado género (por exemplo, mulheres) em determinada lista partidária;
Seja Z a subvenção que corresponderia ao número de eleitos nessa lista, caso não se verificasse qualquer défice de género;
Seja M a sanção pecuniária a que houver lugar;
Seja S a subvenção efectivamente liquidada, deduzida já da sanção pecuniária;
Então,
o Se X <1/3 Þ M=(1/3-X)*Z [e S=Z-M=(2/3+X)*Z]
o Se 1/3£X£2/3 Þ M=0 [e S=Z]
o Se X>2/3 Þ M=(X-2/3)*Z [e S=Z-M=(5/3-X)*Z]