CURTINHAS CXVII
QUEREIS FIADO? TOMAI LÁ!
v Estávamos todos “naquele engano d’alma ledo e cego” de que pouco faltaria para nos vermos livres das embirrações da troika e (pimba!) não é que o Tribunal Constitucional, esse maroto, esse desmancha-prazeres militante, com um acórdão bem magicado, nos devolve às agruras da crise?
v E logo com uma estocada de morte: aproximar o regime da CGA ao regime geral de pensões (CNP) violaria o art. 2º da CRP e o “princípio da confiança” aí consagrado. Nem mais.
v O facto de o citado art. 2º consagrar muita coisa (do “pluralismo de expressão e organização política democráticas” ao “respeito e garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais”; da “separação e interdependência de poderes” aos pilares da organização do Estado, como sejam “a democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”), mas não o “princípio da (protecção da) confiança”, parece não ter turvado, nem ao de leve, tão preclaras mentes.
v Antes da avançarmos na questão, repare, Leitor, como este art. 2º é um mimo:
(i) uma redacção atabalhoada;
(ii) conceitos (liberdades fundamentais, democracia económica, democracia social, democracia cultural, democracia participativa) que, ao ficarem por definir, se converteram logo numa espécie de “estalagem espanhola” (onde, como é sabido, cada um só encontrava o que para lá tivesse levado);
(iii) contradições nos próprios termos (como é que dois poderes podem ser simultaneamente separados e interdependentes?);
(iv) com o palavreado a disfarçar o facto de o texto constitucional não enunciar os princípios que o norteiam (se é que os tem)
– princípios que, em caso de dúvida, serviriam de ultima ratio (e não há jurista que se coiba de citar como sólido princípio constitucional tudo o que lhe possa dar jeito).
v Analisemos mais de perto o que seja “confiança”:
(i) o credor confia em que o devedor lhe pague pontualmente (o que nem sempre acontece);
(ii) o sócio confia no seu sócio (mas quantas vezes essa confiança sai furada);
(iii) o eleitor confia nas promessas eleitorais (e é o que se sabe);
(iv) o cidadão confia na justiça (que também falha);
(v) o doente confia no seu médico (e este pode enganar-se);
(vi) o amante confia na pessoa amada (mas, sem traição quase não haveria literatura);
(vii) o depositante confia em que pode reaver o seu dinheiro quando quiser (mas os Bancos também cessam pagamentos);
(viii) o adepto confia na força da sua equipa (para, vezes sem conta, se desiludir).
E a lista poderia ser prolongada ad nauseam…
v Será que a Lei deve proteger todas estas “confianças”? Se sim, em que consistirá tal protecção?
v É que há “confianças” e “confianças”:
(i) umas, têm raíz em contratos que as partes devem cumprir;
(ii) outras, não passam de uma expectativa, melhor, da fugaz esperança de que tudo acabe por correr de feição.
v Sob outro ângulo, há “confianças” que, se sairem frustradas, não há como remediar: para quem confiou a solução é conformar-se e esquecer. Outras há, porém, que, sendo frustradas, criam a obrigação de reparar (é o caso da confiança contratual). Outras, ainda, são de tal modo importantes que a sociedade se organiza para que elas, mesmo ameaçadas, acabem por prevalecer. Estas últimas designam-se, em abstracto, por “confiança legítima”. E é a protecção da “confiança legítima” (aquela que não pode, de maneira nenhuma, resultar frustrada) que deveria ter dignidade constitucional – e, entre nós, não tem (ainda que seja mencionada, aqui ou ali, nas sebentas de Direito).
v Tudo está, então, em saber se as pensões pagas pela CGA são, ou não, causa de “confiança legítima” e, como tal, intocáveis. Não à luz de um vago “princípio da protecção da confiança” que abarca realidades muito diversas, como referi. Mas do “princípio da protecção da legítima confiança” que o Estado (isto é, a sociedade organizada) assume o compromisso de acolher e fazer respeitar.
v Em Janeiro deste ano (Heresias X – Gato por Lebre), creio ter provado que as pensões, as da CGA e as da CNP:
(i) são pagas pelas contribuições que vão sendo cobradas a patrões e empregados, num esquema de redistribuição;
(ii) gozam, em última análise, da garantia do Estado (o que é dizer, do direito de serem pagas pela receita fiscal).
v Se, mês após mês, as contribuições cobradas não chegam para todas as pensões em pagamento, a garantia do Estado é imediatamente exigível. E se o OGE não comportar o encargo, o Estado, enquanto fiador desse esquema de redistribuição, cairá em incumprimento. Ponto final.
v A confiança dos pensionistas é, assim, equivalente à confiança de qualquer credor: pode, muito bem, resultar irremediavelmente frustrada pela simultânea insolvência do devedor principal (o esquema de redistribuição, seja ele CGA ou CNP) e do fiador (o Estado). Agora, não é uma “confiança legítima”, posto que não está ao alcance de ninguém, num passe de mágica, tornar, quer um, quer o outro, solventes.
v Onde o “princípio da protecção da legítima confiança” resulta ferido é no tratamento dos pensionistas enquanto credores do Estado. Se o Estado se encontra incapacitado de satisfazer pontualmente esses créditos, uma de duas:
(i) ou atravessa uma temporária crise de tesouraria;
(ii) ou está insolvente.
v Num ou noutro cenário, o que o Estado, se devedor de boa-fé, não pode fazer é privilegiar uns credores (investidores na Dívida Pública titulada, PPP) em detrimento dos demais (entre eles, os pensionistas). E este Governo, empurrado ou não pela troika, é o que está a intentar fazer.
v O “princípio da confiança legítima” aplica-se, sim, mas não no sentido que o Tribunal Constitucional subscreve. Todos os credores do Estado (e os pensionistas também) confiam em que o Estado, devedor de boa fé, os trate a todos por igual, consoante a graduação dos respectivos créditos. É essa a “confiança legítima” de qualquer credor. E se o Governo, em nome do Estado, assim não proceder estará a violar grosseiramente o “princípio da protecção da confiança legítima” – ainda que Constituição o ignore.
v Aliás, no seguimento desta decisão do Tribunal Constitucional, vem a troika dizer que as questões de fundo são, afinal, duas:
(i) o desequilíbrio orçamental; e
(ii) o peso da Dívida Pública (cuja parcela maior, recordo, é, de longe, a Dívida Pública Externa).
v Ó espanto! Terei lido bem? São os mesmos que desenharam o Programa de Ajustamento? “Este” Programa de Ajustamento, assente na Dívida Pública Externa? Que fez crescer a Dívida Pública Externa a ritmos próximos daqueles que foram registados entre 2007 e 2010? E a Dívida Pública é agora, para eles, um objectivo estrutural que tiram da cartola? Seus manganões! Contem lá, só pode ser brincadeira.
v A dura realidade, Leitor, é que, com economistas deste gabarito, com juristas que redigem normas como aquela que o Tribunal Constitucional agora invocou, se não tomarmos o nosso futuro em mãos, não ficará nada para contar.
v E a questão é tanto mais grave quanto as duas reformas estruturais mais urgentes são precisamente aquelas que exigem economistas lúcidos e juristas competentes. Refiro-me, como é bem de ver:
(i) à reforma das Leis do Trabalho (que ponha fim à ficção perversa dos contratos de trabalho por prazo indeterminado); e
(ii) à reforma do Estatuto da Função Pública (recentrado, por fim, no aparelho administrativo indispensável ao exercício das funções de soberania - e nada mais).
DEZEMBRO de 2013