CAMÕES, GRANDE CAMÕES – 3
Paralelo com o romance Filodemo-Dionisa, no espaço da casa de D. Lusidardo, processa-se o de Venadoro-Florimena, no espaço do monte com uma fonte. É encantadora e cheia de lirismo e graciosidade a cena do enamoramento entre os dois jovens, reveladora de um espírito forjado no maneirismo retórico e conceptual a lembrar o petrarquismo e os cantares na medida velha.
Venadoro:
Oh! Que formosa serrana
À vista se me oferece!
Deusa dos montes parece
E se é certo que é humana,
O monte não na merece.-
Pastora tão delicada,
De gesto tão singular,
Parece-me que em lugar
De perguntar pela estrada
Por mim lhe hei-de perguntar.
Até qui sempre zombei
De qualquer outra pessoa
Que afeiçoada topei,
Mas agora zombarei
De quem se não afeiçoa.
Serrana, cuja pintura
Tanto a alma me moveu,
Dizei-me: Por qual ventura
Andareis nesta espessura
Merecendo estar no céu?
Florimena:
Tamanho inconveniente
Andar na serra parece?
Pois a ventura da gente
Sempre é muito diferente
Da que, ao parecer, merece.
Venadoro:
Tal resposta é manifesto
Não se aprender entre as cabras.
Pois não vos parece honesto
Saberdes matar co gesto
Senão inda com palavras.
No mato tudo é rudeza:
Há tal gesto e discrição?
Não no creio:
Florimena:
Porque não?
Não suprirá natureza
Onde falta criação?
Venadoro:
Já logo nisso, Senhora,
Dizeis, se não sinto mal,
Que do vosso natural
Não era serdes pastora.
Florimena:
Digo, mas pouco me vale.
Venadoro:
Pois quem vos pôde trazer
À conversação do monte?
Florimena:
Perguntai-o a essa fonte,
Que as cousas duras de crer,
Um as faça, outro as conte.
Venadoro:
Esta fonte que está aqui,
Que sabe do que dizeis?
Florimena:
Senhor, mais não pergunteis
Porque outra cousa de mim,
Sabei que não sabereis.
De vós agora sabei
O que não tendes sabido:
Se quereis água, bebei;
Se andais, por dita, perdido
Eu vos encaminharei.
Venadoro:
Senhora, eu não vos pedia
Que ninguém me encaminhasse;
Que o caminho que eu queria
Se o eu agora achasse,
Mais perdido me acharia.
Não quero passar daqui
E não vos pareça espanto,
Que em vos vendo me rendi,
Porque quando me perdi,
Não cuidei de ganhar tanto.
Florimena:
Senhor, quem na serra mora,
Também entende a verdade
Dos enganos da cidade,
Vá-se embora ou fique embora
Qual for mais sua vontade.
Venadoro:
Oh! Lindíssima donzela
A quem ventura ordena
Que me guie como estrela!
Quereis-me deixar a pena
E levar-me a causa dela?!
E já que vos conjurastes
Vós e Amor para matar-me
Oh! Não deixeis de escutar-me!
Pois a vida me tirastes
Não me tireis o queixar-me!”
Não nos parece longa a distância que separa esta discreta Florimena, da donzela espirituosa, feminina, graciosa e rebelde do teatro marivaudesco, dois séculos mais tarde.
A mudança que o amor provoca nos seres é bem expressa neste diálogo entre Lusidardo e Venadoro:
Lusidardo:
Oh! Venadoro, meu filho!
És tu este?
Venadoro:
Tal estou
Que julgo que este não sou.
Lusidardo
Certo que me maravilho
De quem tanto te mudou!
Como estás assi mudado
No rosto e no vestido?
Venadoro
Ando já todo trocado
Tanto que fiquei pasmado
De como fui conhecido.
Enquanto Lusidardo procura o filho perdido no monte, em casa, Dionisa, não menos perdida, expande junto de Solina as contradições e ânsias em que vive, em dialéctica de sofrimento a que a própria psicanálise responderá hoje:
Oh! Solina, minha amiga,
Que todo este coração
Tenho posto em vossa mão!
Amor me manda que diga
Vergonha me diz que não.
Que farei?
Como me descobrirei?
Porque a tamanho tormento
Mais remédio lhe não sei,
Que entregá-lo ao sofrimento.
Meu pai muito entristecido
Se vai pela serra erguida,
Já da vida aborrecido,
Buscando o filho perdido,
Tendo a filha cá perdida!
Sem cuidar, foi a casa encomendar
A quem destruir-lha quer.
Olhai que gentil saber,
Que vai comigo leixar
Quem me não leixa viver.
E, não resistindo, concerta com a criada um encontro com Filodemo,
Para ver
Se é por ventura verdade
O que dizeis que me quer.
Mas quando aquele lhe aparece, o mesmo embaraço a toma:
Agora me quisera eu
Daqui cem mil léguas ver.
Filodemo exprime exaltadamente o seu amor e o desejo de se sacrificar para lho provar. Dionisa manifesta uns últimos rebates de altivez:
Nesse deserto apartado
De toda a conversação
Merecíeis degradado
Por justiça. Com pregão,
Que dissesse: “Por ousado”.
E eu também merecia
Metida a grave tormento,
Pois que, como não devia,
Vim a dar consentimento
A tão sobeja ousadia.
Mas o sofrimento e a humildade de Filodemo comovem-na e, ao querer dar-lhe uma resposta cabal, pede a Solina que o faça por ela, pois
Já não tenho em mim poder,
Segundo me sinto agora,
Para poder responder.
Enfim, um remate de ficção cor-de-rosa resulta da descoberta da nobreza dos dois jovens e do seu parentesco com D. Lusidardo e os filhos. Já encontráramos esse enredo de fantasia em Gil Vicente, na tragicomédia “D. Duardos”, por exemplo, onde o hortelão não passa de um príncipe disfarçado, apaixonado pela princesa Flérida, e outras peças de igual cariz romanesco, próprias dos enredos fantásticos de cavalaria do ciclo bretão e outras lendas em que o maravilhoso imperava.
Cingimo-nos, nesta peça, à análise dos dois casos de “travesti” amoroso que o destino conduziu a bom porto, abandonando cenas e personagens secundárias, por efeitos de maior coesão. O objectivo foi, realmente, o de reviver momentos de prazer literário há muito sentidos, na estranheza pela indiferença pedagógica nacional pela faceta dramática de Luís de Camões.