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A bem da Nação

REFLEXÕES SOBRE O ESTADO NAÇÃO

                              

                       Adriano Miranda Lima, Coronel

    

      Ralf Dahrendorf, ex-reitor da London School of Economics, conclui assim um seu artigo publicado no passado dia 24 de Abril, no La Vanguardia: “Los estados nación son bienvenidos; son elementos importantes del orden liberal mundial. Pero tienen que abrirse a la cooperación y a la coordinación con otros. Debemos estar alerta para resistir el comienzo de una tendencia que recuerda el desarrollo en los primeros años del siglo XX, una tendencia que rápido condujo a un desastre global.”

      Em consciência, não vejo razões para partilhar a esperança que o autor ainda parece depositar nas virtudes do estado nação. Ele não reconhece severidade no diagnóstico dos sintomas do organismo que ausculta, preferindo uma avaliação do estado geral. Mas se insistirmos com o estetoscópio sobre o corpo do mundo em que vivemos, acabamos por auscultar arritmias no seu coração pulsante: o estado nação. E o nosso diagnóstico é que o estado nação é um paradigma com sintomas de caminhar para o esvaziamento do seu sentido. Alicerçado nos conceitos de “nação e “cidadania”, o estado nação é uma invenção da cultura ocidental, nascida e/ou consolidada com a Revolução Francesa. Se virmos bem, esse paradigma tem propiciado à humanidade mais motivos para infortúnio do que para felicidade, como foram os sangrentos conflitos que estão associados ao surgimento e afirmação do estado nação: as guerras napoleónicas, a Guerra Franco-Prussiana, a I Guerra Mundial, a II Guerra Mundial, etc. Isto para não irmos mais atrás e analisarmos a barbárie que tem sido uma constante da humanidade desde que ela, há mais de 3000 anos, começou a construir os alicerces daquilo que hoje consideramos ser a nossa civilização, com a nacionalidade na sua génese.

       O estado nação tem falhado na legitimação das soberanias nacionais para a busca de um ideal de pacificação interna e de aglutinação de princípios e valores a favor da paz e da estabilização de uma ordem internacional. Pelo contrário, tem sido um fautor constante de ameaça à paz e de permanente desagregação e conflito à escala regional e mundial. Em vez de servir para despertar no homem a reflexão serena e lúcida sobre as melhores vias conducentes ao progresso civilizacional e à harmonia entre os povos, o estado nação tem sido o acicate de autênticas sanhas que fazem regredir o homem na escala civilizacional. No século XX, houve recuos que não são motivo de orgulho para o homo sapiens, cuja mente não parece tão evolutiva para ganhos morais como é para avanços tecnológicos.

      Quando aludimos aos conflitos sangrentos que ensombram a história humana,  constatamos que o continente europeu, precisamente o mesmo que modelou o estado nação e a hodierna democracia, foi dos mais bárbaros nos seus conflitos internos. E espanta que seja o mesmo continente que gerou os pensadores que inspiraram o progresso civilizacional e moral. Aparentemente, é como se houvesse uma disjunção entre a consciência moral e a consciência ontológica. Há bem poucos anos, imaginávamos que a loucura nacionalista na Europa tinha ficado definitivamente desmantelada e exposta na vitrina dum museu da História para que os povos ali pudessem dar largas à sua estupefacção e exorcizar tristes memórias. É o caso de Auschwitz, Birkenau e Treblinka. Mas, por incrível que pareça, meio século decorrido desde aqueles tristes acontecimentos, voltámos a ver reeditado o rosto da barbárie em plena Europa (ex-Jugoslávia), que só não chegou a ser uma réplica tão acabada como a da década de 1940 porque o mundo interveio com firmeza e em força. E o que se passou então nos Balcãs, com a dissolução do estado federal, acontece um pouco por outras regiões do planeta, embora nalguns casos com menos visibilidade mediática, porque no mundo subdesenvolvido as tragédias humanas são avaliadas com outro peso e outra medida. É tudo uma questão de relatividade, embora o tal homo sapiens seja o mesmo, apenas diferenciando-o a geografia e a etnia, consequentemente, o progresso material e cultural.

     

      Enfim, tudo o que de mal tem assombrado o mundo tem na sua génese a questão das nacionalidades, estas com um rosto mais sombrio quando misturadas com o ingrediente da religião. Transformam-se então num cocktail altamente explosivo.

        

      Entendo que a divisão do mundo numa multiplicidade de estados soberanos, ou seja, a balcanização planetária, foi a solução possível e mais fácil, porque ao sabor de estirpes de nacionalidade que eram tão primevas quanto baseadas no instinto de agregação e de sobrevivência dos povos. Fizeram história, é um facto, mas a História não lhe poderá ser muito benevolente ao analisar com rigor a conta corrente dos seus êxitos e fracassos. No entanto, o processo não parece encerrado. O processo continua a abrir-se com novos episódios porque o ideal nacionalista é bandeira que se arvora contra mapas políticos feitos por conveniências conjunturais do passado, sinal de que o velho paradigma do estado nação é ainda apelativo e tem força. Mas se tal acontece é porque a humanidade pouco evoluiu na arquitectura de um edifício político a uma escala mais ampla, à medida do seu destino planetário. Dir-se-á que, presa a uma visão mesquinha dos problemas, a humanidade continua sujeita aos apelos dos seus instintos mais básicos, sem conseguir transpor o limiar da razão e da crença que lhe permita entrever saídas mais promissoras de um futuro melhor. O mesmo é dizer, acomodou-se no reestruturar do pensamento e no lançar dos alicerces de uma ordem moral e política a nível global que rompa com os arquétipos do passado.

     

       Há alguns anos, Francis Fukuyama escrevia que a humanidade já tinha chegado a “O Fim da História”. A tese de Fukuyama é que o actual estádio civilizacional (estado nação, democracia) é o limite dos sonhos depurados do homem. Ao considerar a democracia ocidental a obra final do humanismo planetário, penso que Fukuyama se equivoca e se mostra pouco ambicioso na sua previsibilidade. Além de que dá mostras de excessiva credulidade nas virtudes dessa “obra do humanismo”, eximindo-se a uma leitura crítica dos sinais inquietantes que a actualidade nos vai permitindo enxergar.

    

       Pelo contrário, sou mais levado a defender que os actuais modelos de cidadania, democracia e organização política podem ter esgotado definitivamente os seus recursos, com poucas hipóteses de auto-regeneração e afinação dos seus motores. Se, por analogia, associarmos os fenómenos humanos aos do todo universal, como o comportamento da matéria cósmica, poderemos aceitar, como é o postulado de alguns pensadores como Edgar Morin, que os actuais sistemas organizativos das sociedades humanas estão também sujeitos às leis da termodinâmica, atingindo um estádio em que começa a desintegração e se caminha em regressão ao ponto zero. Geram-se, a partir daí, novos processos de unificação e solidariedade que marcarão a cadência da regeneração de que resultará uma sociedade outra, verdadeiramente global e comprometida com os grandes e inimagináveis desafios planetários. Essa sociedade só poderá ser uma sociedade de vocação planetária, construída sobre as ruínas do edifício que actualmente apresenta fissuras preocupantes na sua estrutura. Mas Deus nos livre de uma regressão total, que só poderia ocorrer com uma catástrofe nuclear, como a ficção nos tem mostrado na literatura e no cinema.

     

      Como nota de optimismo, é de admitir que a consciência planetária possa já estar a esboçar-se. A globalização está a ganhar os seus contornos com a incipiente liberalização dos mercados e a criação de estruturas económicas, técnicas e de comunicação de magnitude planetária. Ainda que em fase preliminar. Não se tem ainda uma noção completa do efeito que a Internet poderá vir a representar, acelerando as comunicações e esbatendo as fronteiras nacionais, e com isso atenuando as clivagens étnico-culturais que são a origem do estado nação. Mas se a globalização da economia tem já o seu esboço, muito tem de ser feito ainda ao nível dos instrumentos jurídicos e das instâncias de decisão, de modo a que o objectivo seja aplanar uma via planetária comum e não o confronto permanente entre os interesses divergentes. Os problemas ecológicos do mundo como um todo são um exemplo bem elucidativo daquilo que só uma verdadeira consciência colectiva conseguirá resolver, sobrepondo-se aos interesses particulares de cada estado nação.

 

      É absolutamente imperioso reformar a ONU (e outras instituições internacionais como a FMI, as OMG, o TPI, etc) de forma que o ideal organizativo sirva não apenas para dirimir conflitos, divisões e antagonismos, mas para se arvorar em verdadeira instância de agregação de vontades e de cooperação comunitária. Quando começar a funcionar em outros moldes, credibilizando-se e fazendo-se respeitar, estará dado o mote para resoluções mais ambiciosas.

       

      Para concluir, não me parece que o futuro da humanidade esteja na continuidade do estado nação tal como o conhecemos. É preciso reinventar tudo e para muito melhor.

 

 

 

                                       Adriano Miranda Lima

 

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