25 A
Algumas reflexões sobre dois temas que aparecem sistematicamente interligados: a descolonização e o regime político actual.
Os cravos incolores
A) A descolonização
Para uns, o que foi possível. Para outros, o que nunca deveria ter sido feito. Que concluir?
Os políticos que emergiram com o 25A sabiam bem: (i) que, enquanto durasse o conflito colonial, Portugal nunca entraria no clube dos países europeus ricos e com “algibeiras fundas” (pertencíamos já a um outro clube de países europeus, tão ricos como aqueles outros, mas muito menos propensos a subsidiar por tudo e por nada, e mais exigentes quanto a resultados palpáveis - ou seja, mais pragmáticos e menos ideológicos); (ii) que, sem a perspectiva firme de melhor passadío logo ao virar da esquina, o povo português dificilmente resistiria aos encantos dos “ámanhãs que cantam”; (iii) que eles, nóveis políticos, não entravam no guião que o PCP tinha preparado para o instante em que conquistasse o poder; (iv) que a deriva esquerdista calava fundo num povo invejoso e mesquinho, que desde meados do sec. XVI se comprazia na intriga e na delacção.
Acabar rapidamente com os conflitos coloniais era, para esses políticos que procuravam o apoio das potências ocidentais e um lugar na História, uma questão de sobrevivência pessoal. E, por isso, fizeram-no como puderam - de qualquer maneira e sem grande cuidado. “Ai, não nos aceitam “na Europa” com as colónias em brasa?” terão pensado “então borda fora com elas, e quanto antes!” Foi o que se viu.
Mas o cenário alternativo deve ser igualmente ponderado. Persistir na ligação aos territórios continentais africanos (sobretudo estes) - ainda que sob um novo quadro, que ninguém sabia qual fosse nem como levá-lo à prática – resultaria, conforme tudo então parecia indicar, no extremar dos antagonismos. Por esse tempo, era clara a linha de fractura que dividia a instituição militar em dois grupos de desigual peso e que atravessava a sociedade portuguesa de alto a baixo - sem que ninguém soubesse predizer, com segurança, em que proporções. Como reagiria essa mole silenciosa, desde sempre excluída da política, perante a perspectiva de mais uns quantos anos de vida dura e sacrificada, que dessem tempo à diplomacia? Poderia uma sociedade em ebulição, permanentemente atiçada, revelar coesão moral e disciplina social, condições sine qua non para a resolução pacífica do problema colonial? Apesar de todas as incertezas, este era um cenário de grande conflitualidade - se não mesmo de guerra civil declarada, atendendo ao que se passava no interior das forças armadas.
Sob este ângulo, a descolonização atabalhoada foi o preço que os de África pagaram para que nós, os da Europa, não nos atirássemos às goelas uns dos outros. Poderia não ter sido assim?
Poderia, se...e são vários estes ses. Poderia ter sido diferente (a ordem é irrelevante): (i) se o PCP não fosse, ao tempo, a única força político-militar no terreno (embora dispusesse, na realidade, de efectivos muito inferiores àqueles que os seus adversários temiam) nem tivesse como objectivo primordial subtrair os territórios africanos à influência ocidental; (ii) se o Estado português, essa amálgama de governantes e governados, inspirasse mais confiança, tanto aos de dentro, como aos de fora; (iii) se os próceres do anterior regime tivessem sido mais abertos a parcerias internacionais, em vez de olharem as colónias como mercados cativos; (iv) se, no confronto leste-oeste, os territórios africanos não tivessem a importância estratégica que ambos os lados lhes reconheciam; (v) se o processo de globalização competitiva, a que a desmonetização do ouro (em 1972) dera início, tivesse arrancado uns dez anos mais tarde.
Num discurso premonitório, logo após os primeiros incidentes em Luanda e o abortado golpe palaciano de Botelho Moniz, Oliveira Salazar (1962) disse: “Se esta atitude tem uma explicação – essa palavra é: Angola”. Dissesse ele “territórios africanos (províncias ultramarinas, no léxico da época)” e estaria a descrever, com meridiana clareza, o leit motif de todos os que se envolveram activamente, doze anos mais tarde, no post-25 A. Uma prova? Assim que ficou assente que a descolonização era uma viagem sem regresso, o PCP mudou de rumo em matéria de política nacional, por reconhecer que não contava, portas adentro, com meios suficientes para aguentar o poder (a deriva esquerdista tinha-lhe feito muitos estragos) - e por não alimentar ilusões sobre a ajuda que, de fora, lhe chegaria. E só então as potências ocidentais terão percebido que as estratégias que se digladiavam em Portugal coincidiam num ponto: a quebra de todos os vínculos entre a “Metrópole” e o “Ultramar”. Para uns, tratava-se da missão principal. Para outros, era apenas o movimento táctico inicial. Para a tendência globalizante, era uma questão de tempo.
B) O regime político actual
A estratégia que ganhou vencimento, em Portugal, mal a guerra fria regressou aos seus teatros habituais, alinhava pelo modelo democrático ocidental. Mas só superficialmente. No fundo, era a expressão de grupos políticos que tinham vivido em conjunto, primeiro, a ameaça de aniquilamento (pelo PCP e pelos variados esquerdismos) e, mais tarde, de subjugação (pelo Conselho da Revolução). Não surpreende, pois, que a principal preocupação que todos eles, vencedores, partilhavam fosse, não tanto a pureza de um modelo democrático à l’ anglaise, mas a conservação do poder, ora na mó-de-cima, ora na mó-de-baixo. Basta atentar em dois pontos da Constituição de 1975, mantidos praticamente intactos em todas as sucessivas revisões: o semi-presidencialismo e o processo das candidaturas a deputados.
O semi-presidencialismo era, e é, indispensável para estabelecer um segundo mecanismo de equilíbrio entre os partidos com representação parlamentar – mecanismo este que não dependeria linearmente das composições que o Parlamento fosse tendo. Sob a ideia - bem imaginada, mas falsa - de que assim se consagrava o poder moderador, esteio do princípio da separação de poderes, o que se fazia era assegurar uma divisão (ou repartição) de poderes entre os partidos vencedores que nunca ultrapassasse as conveniências.
Por seu turno, o processo das candidaturas a deputados, centrado e mediado pelos aparelhos partidários, visava assegurar que os partidos vencedores dos dezoito meses de chumbo nunca perderiam representação parlamentar. Dito de outro modo, cairia no deserto quem quisesse intervir activamente na política sem recorrer à boa vontade e aos bons ofícios desses aparelhos que tinham sido expressamente pensados para preencher os cargos públicos.
Tudo seria diferente se o Presidente da República fosse designado pelo Parlamento (parlamentarismo puro) ou fosse eleito, em simultâneo, com os deputados (dando realidade à consigne “Um Presidente. Uma Assembleia. Um Governo”, já em terrenos do presidencialismo). Ou se os deputados fossem eleitos por círculos uninominais, tornando-os assim mais responsáveis perante quem os elegeu (o eleitorado do círculo) do que perante quem os seleccionou (os aparelhos partidários). É claro que a defesa de círculos uninominais esbarra logo no argumento do caciquismo local, tão ao gosto português. Mas, olhando de mais longe, a diferença entre o caciquismo local e o caciquismo instalado nos aparelhos partidários (os célebres “barões”) mal se nota. Talvez o cacique local propenda mais para o caricato. Mas têm a vantagem inexcedível de se sentir malgré tout na obrigação de prestar contas, de “dar cavaco” ao seu eleitorado – enquanto que o “barão do aparelho” não responde senão perante a sua própria capacidade de arregimentação.
C) Uma última pergunta fica no ar: o que faz o PCP no concerto dos partidos vencedores do post-25 A, ele que, no plano nacional, mas não na cena internacional, foi o grande vencido?
Ah! Isso é outra conversa!
A.Palhinha Machado