MODELO DE DESENVOLVIMENTO, PRECISA-SE
Henrique Salles da Fonseca
Haverá realmente mais país para além do défice? Eis a polémica questão que há algum tempo o Presidente Sampaio lançou. E, sim, creio que tinha toda a razão para colocar tal questão uma vez que o processo de reequilíbrio das contas públicas tem sido no nosso país objecto das mais variadas imaginações contabilísticas, sempre com o objectivo de fingir que se estava a mudar aquilo que se pretendia manter.
Pretendia-se manter a omnipresença da Administração Pública em todos os recantos da vida nacional; pretendia-se manter a Função Pública como o local certo para se ter um vencimento tranquilo; pretendia-se manter o Estado como o grande zelador de todos e cada um dos cidadãos.
Assim se agravou a carga fiscal para níveis verdadeiramente asfixiantes da Economia e, por incrível que pareça, ainda vai aparecendo quem advogue que a redução do défice se deve fazer pelo reforço das receitas em vez de o ser pela redução das despesas. Mais: há quem apresente estatísticas mostrando que a carga fiscal portuguesa é menor que nos demais Estados Membro da UE com isso glosando o mote das taxas portuguesas em comparação com as estrangeiras esquecendo o real problema que existe de desvio da concorrência pela via da fiscalidade. Quando em toda a UE – e em especial na Zona Euro – a matéria tributável for calculada por um único método, então colherá discutir taxas. Entretanto, é do conhecimento empírico que a actual carga fiscal portuguesa é asfixiante da actividade económica. E as tais estatísticas só servem para deturpar a realidade que pesa sobre um tecido empresarial maioritariamente débil, sem estrutura tecnológica moderna, gerido “sobre o joelho” e não gerando um valor acrescentado que lhe permita enfrentar a concorrência externa e muito menos o permanente assédio do Fisco.
E se tanto se tem pugnado pela formação profissional da mão-de-obra e pelo retorno às vias profissionalizantes no ensino secundário, há que reconhecer que nos temos sistematicamente esquecido da formação do próprio empresariado. Não basta ser empreendedor, é fundamental saber gerir e é precisamente esta vertente que tem sido esquecida. O resultado é o choque geracional com os jovens licenciados a chegarem às empresas e a serem incumbidos de tarefas profissionalmente aviltantes porque “há que começar por baixo, a arrumar prateleiras e a varrer o chão” para se conhecer o negócio. Estas falácias incomodam muito os jovens licenciados mas na verdade só revelam a grande impreparação dos empresários que assim pensam. E é disto que somos servidos e não de outro tipo de empreendedorismo. O famoso “guarda-livros” ainda existe na terminologia empresarial portuguesa e a contabilidade é “uma coisa que só serve para eles nos virem cá buscar mais dinheiro”. E quando se começa a ensaiar uma contabilidade como auxiliar da gestão, logo o empresário tradicional começa a ficar nervoso não vão os empregados passar a saber quanto a empresa ganha ou deixa de ganhar. É também a este tipo de empresariado que a fiscalidade portuguesa se dirige e não esqueçamos que a grande maioria do tecido empresarial português é de pequenas e micro empresas e, muito provavelmente, com este tipo de liderança.
O quase extermínio da iniciativa produtiva já não deixa grandes dúvidas de que parece chegado o momento de questionar da irreversibilidade das “conquistas de Abril”. Deverá o Serviço Nacional de Saúde continuar a constituir um insaciável sorvedouro de dinheiros públicos? Não terá chegado o momento de dizer aos professores que deixarão de ser eles a definir a política de educação? Não terá chegado o momento de dizer aos profissionais da Justiça que têm feito um trabalho de eficácia miserável? Continuarão os contratos colectivos de trabalho a fazer sentido?
É claro que numa pequena economia aberta como a nossa, as condicionantes internacionais – nomeadamente a globalização para que não estávamos minimamente preparados – têm constituído um sério problema mas convenhamos que o modelo de desenvolvimento em vigor também tem muitas responsabilidades. E se sobre o ciclo económico internacional e sobre a política mundial não podemos actuar de modo decisivo, já a nível interno só a nós, portugueses, compete diagnosticar os problemas e encontrar-lhes as soluções.
E, se não, vejamos:
- A pressão há decénios exercida no sentido da terciarização da nossa economia tem prejudicado muito a capacidade produtiva daí resultando grande debilidade da oferta;
- Como o modelo de desenvolvimento se tem baseado no estímulo da procura, o desequilíbrio da Balança Comercial assume um carácter perene com grandes reflexos na Balança de Transacções Correntes e mesmo na de Pagamentos;
- O endividamento externo do sistema bancário assim resultante pode ter reflexos na manutenção em Portugal de importantes centros de decisão.
A libertação da economia produtiva tem que se basear em três pilares:
v Redução significativa da carga fiscal
É necessária uma substancial redução do número de funcionários públicos – mesmo considerando o exercício dos direitos pensionáveis – sobretudo se se criarem condições para que o tecido empresarial produtivo se sinta motivado para receber esses “dispensados” da Função Pública. Basta referir que as Despesas com Pessoal inscritas no Orçamento de Estado de 2006 representam praticamente 15% do PIB para se compreender que qualquer redução nesta rubrica implica imediatas melhorias no défice e na pressão fiscal sobre o tecido produtivo; o mesmo se diga quanto à pressão inflacionista pela transformação dos “consumidores públicos” em “trabalhadores produtivos”. Depois do congelamento das “promoções automáticas” em finais de 2005, é com agrado que se constata em 2006 a entrada em vigor da política de redução significativa dos efectivos públicos.
v Redução significativa da burocracia
Desde os anos 40 do século passado que, com a imposição dos formalismos notariais, a envolvente burocrática da vida empresarial vinha crescendo a um ritmo entorpecedor constituindo nos últimos anos um forte obstáculo à dinâmica económica em geral e à implantação empresarial em particular. É com satisfação que constato a política em curso de anulação de inúmeros requisitos burocráticos e da anulação da obrigatoriedade do fornecimento de informações à Administração Pública sobre a vida das empresas, elementos esses de que ela já dispunha nuns Departamentos e que não disponibilizava aos outros. Calcula-se que sejam cerca de 150 mil as certidões que anualmente as empresas deixam de ter que apresentar no sentido de que nada devem ao Estado e à Segurança Social. O desmantelamento do cerco burocrático é importante para a competitividade geral da nossa Economia sobretudo porque se tornava evidente que a qualidade do negócio jurídico e o relacionamento com o Fisco já não conseguiam ser garantidos com base nos obsoletos processos em vigor.
Depois de um estrondoso défice orçamental em 2005, é com políticas de efectiva redução da Despesa Pública Corrente que finalmente se pode começar a acreditar que os défices previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento vão ser cumpridos; muito desejo que as realidades se comecem a verificar já no corrente ano.
Mas tem que haver um terceiro pilar para que tudo volte a fazer sentido e esse é o da
v Criação de mecanismos que permitam a transparência dos mercados e a clarificação do sistema de formação de preços
No que respeita à economia produtiva portuguesa, a criação de mecanismos que permitam a transparência dos mercados é um processo fundamental uma vez que a distribuição do risco não se faz com equidade por todos os operadores envolvidos. A gravidade da questão assume dimensões de fatalidade quando se trata de produtos perecíveis. A agricultura e as pescas portuguesas há muito que deixaram de ter voz activa na formação dos preços de transacção das suas próprias produções e por isso mesmo em quase nada contribuem para a dinâmica económica nacional. Contudo, se pudéssemos contar com um pujante sector primário, o saldo da Balança Comercial registaria “ipso factu” uma grande melhoria com inerentes benefícios para a indústria e para os serviços, a Balança de Pagamentos apresentaria melhores saldos e o risco de manutenção em Portugal de importantes centros de decisão não se faria sentir com a gravidade actual. Mas essa pujança só será possível quando houver uma clarificação no método global de formação dos preços, quando os mercados forem transparentes e sobretudo quando neles se puder transaccionar sobre futuros, única forma de distribuir o risco pelos vários intervenientes no mercado.
Tendo os problemas portugueses tudo a ver com a exaustão do modelo de desenvolvimento implementado depois de 1974, a adaptação a um novo modelo está a acirrar a resistência daquelas correntes políticas que implementaram o modelo exaurido. Mais: dado que as alterações necessárias no modelo implicam mudanças muito significativas no que se refere às condições laborais de muitos dos que se encontram a funcionar no âmbito do velho modelo, fácil é de admitir que a inércia seja enorme e a contestação produto de grande consumo.
A gratuidade de inúmeros serviços a que o Estado se viu constitucional ou administrativamente obrigado criou um clima de permanente exigência sem qualquer expressiva contrapartida por parte dos beneficiários; a terciarização quase compulsiva da actividade económica nacional provocou uma quebra radical da actividade produtiva; o fomento do consumo pela prática de uma política salarial eleitoralmente calendarizada, levou à degradação da Balança de Transacções Correntes a ponto de colocar problemas de endividamento externo e da manutenção no país de alguns centros de decisão.
Fechou-se o ciclo por falência do modelo; procura-se outro modelo que inaugure o novo ciclo.
Resta saber se haverá vontade política para voltar a dar força à actividade produtiva em Portugal.
Lisboa, Março de 2006
Henrique Salles da Fonseca
Publicado na "Economia Pura", edição de Junho/Julho de 2006