PORTUGUESES QUASE ESQUECIDOS – 2
JOÃO DAS REGRAS
Porquê desmerecer os actos e feitos de João das Regras? Porquê fazer desaparecer no pó da História e no tumulto dos acontecimentos a figura e a memória do homem que ocupou no seu tempo o primeiro lugar e cuja acção condiciona tão prestimosamente as transformações do futuro?
Só se pode entender tão funda hostilidade ou pelas ideias que ele representou ou pela necessidade de dar relevo a outras personagens que não se veriam, que nada seriam, senão colocados sobre o sólido e alto pedestal da sua obra. Porque João das Regras inovou, reformou, administrou sobre princípios inteiramente diferentes daqueles até então adoptados na Administração portuguesa. E por isso feriu ideias pré-concebidas, prejudicou interesses poderosos, passou por cima de privilégios consagrados, introduziu no Governo pela primeira vez elementos novos provindos do anonimato das classes oprimidas ou desdenhadas.
Mas é preciso notar que João das Regras surgiu para a vida pública pelas imposições duma revolução e era natural que, na rigidez da sua probidade, quisesse realizar as ideias que a inspiraram e aproveitar os elementos que para ela contribuíram e satisfazer os interesses que ela sugerira.
A revolução de 1383 era a expressão da ansiedade dum povo que se via perdido no turbilhão das mais vis competições e que fazia aquele esforço desesperado para se salvar. O que ela continha de aspiração indefinida, de vontade desordenada e de força fecundante, só o espírito avisado e a sabedoria de João das Regras podiam compreender e realizar.
É por isso que ele é a figura primacial do Governo saído da revolução, o inspirador das suas reformas, o orientador da sua acção política e que impõe à sua organização um cunho nitidamente popular, livre de abusivas intromissões aristocráticas, liberto de todas as veleidades despóticas. E é ele ainda que comanda s última fase da revolução conduzindo com superior domínio as Cortes de Coimbra de 1385 donde saiu definitivamente consolidada a independência do novo Portugal.
E de que novo Portugal se tratava? Claramente, o resultante das novas ideias que João das Regras trouxera de Bolonha em cuja Universidade cursara Direito.
A Idade Média envolvia o mundo no manto das suas trevas. O poder era despótico, os princípios brutais, a Igreja absorvente e autoritária. A ciência e a instrução estavam nas mãos dos clérigos e dos monges e o pensamento livre rigorosamente proscrito.
Pelo contrário, Bolonha era uma cidadela do pensamento secular que se defendia asperamente das interferências e pressões das autoridades eclesiásticas. Os doutores que saiam das entranhas da sua sabedoria pertenciam a todas as classes e a todas raças e eram os homens que, por toda a parte, substituíam nos lugares de direcção política aqueles que até ali tinham ocupado por mero privilégio as nascimento. A Escola de Bolonha opunha, assim, à realidade precária do privilégio a realidade eterna do espírito científico.
Se no campo de Aljubarrota se feriu uma batalha decisiva no ponto de vista militar, nas Cortes de Coimbra feriu-se uma batalha não menos decisiva no ponto de vista político. Pode mesmo dizer-se que a vitória militar de Aljubarrota não seria possível sem a vitória política de Coimbra.
«Em Coimbra, o Grão Doutor é o general e o chefe. Essa batalha de discursos era diversa mas não menos brava de pelejar; porque uma grande parte da nobreza, decidida a defender o reino do castelhano, não o estava a aclamar Rei ao Mestre de Avis.» – Oliveira Martins, in História de Portugal
É ali [nas Cortes de Coimbra] que se opera, pela acção de João das Regras, a reconciliação da nobreza soba ideia que se tornou unânime da eleição do Mestre de Aviz e a união de todas as classes subordinadas ao pensamento comum e superior de salvar a independência do reino.
Apesar da incidência das suas acções, nunca o vencedor de Aljubarrota se pôde entender com o construtor do novo Estado. Eram dois temperamentos diversos e representavam duas doutrinas opostas.
Nun’Álvares era um cavaleiro medieval cuja visão se perdia nos horizontes longínquos da ilusão e da lenda e João das Regras um Doutor de cultura positiva que procurava no estudo das ideias e na compreensão dos factos a melhor forma de governar os povos. Um na aventura guerreira e o outro na acção política conquistaram duas glórias diferentes e antagónicas sendo certo que, pela natureza dos tempos, é a glória do Condestável que ensombra a glória porventura mais fecunda do homem de Estado.
Uma espada heróica e vitoriosa brandida no cenário agitado dum campo de batalha presta-se mais para os enaltecimentos teatrais da História do que as realizações governativas lentamente operadas no campo silencioso e árido da administração. O herói seduz as imaginações propensas às construções lendárias; o político apenas suscita a curiosidade dos estudiosos inclinados à crítica a à análise. O herói projecta na História a própria figura nimbada da luz das suas vitórias; a obra do político não mostra os seus efeitos senão nas morosas transformações que, com outros nomes e sob outras legendas, se operam nas épocas que se vão seguindo. Assim, o que ficou na História marcando a acção culminante deste período foi a epopeia de Aljubarrota cujo clarão ofuscou o valor mesmo dos actos que a prepararam e a tornaram possível.
Outra razão a considerar para explicar o ostracismo histórico a que foi condenado o grande legista é que os cronistas eram áulicos, pertenciam à domesticidade dos Reis e escreviam por encomenda e por ordem, assinalando-se-lhe a orientação e os feitos que deviam louvar nos seus escritos. E assim, Fernão Lopes exalta a glória de Nun’Álvares que não diminui a glória de D. João I mas vai engalanando o Rei com os louros que deviam pertencer a João das Regras. Para isso, é preciso esconder o Chanceler, desvanecê-lo, eclipsá-lo, ficando os resultados da sua magnífica influência política, que encheu de grandeza o reinado, no activo do Mestre de Aviz.
BIBLIOGRAFIA:
Carlos Olavo, «João das Regras – jurisconsulto e homem de Estado», Livraria Editora Guimarães & Cª, Lisboa, ed. 1941, pág. 10 e segs.