A INVASÂO E OCUPAÇÃO DO IRAQUE − TRÊS ANOS DEPOIS
Adriano Miranda Lima
Passa agora o terceiro aniversário da invasão e ocupação do Iraque sob a égide dos desígnios inconfessáveis da administração Bush e seus apaniguados apoiantes.
É já um dado adquirido que as razões então invocadas para a invasão foram totalmente contrárias à razão e ao mais elementar sentido de prudência e de discernimento estratégico que deve nortear uma nação com as responsabilidades planetárias como são os Estados Unidos da América.
De então para cá, o Iraque tornou-se, como se sabe, numa incontrolável coutada do terrorismo e num país onde a saga sangrenta é uma realidade diária que se traduz num inaudito sofrimento para uma população que é tão inocente e merecedora de paz como a de qualquer país do Ocidente. O resultado conseguido foi precisamente o oposto dos objectivos estratégicos visados pelas potências ocupantes.
Entretanto, Saddam Hussein está a ser julgado por crimes cometidos para manter o seu despótico poder e sua sede de controlo hegemónico naquela que é a região do globo que mais se assemelha ao barril de pólvora que se receia possa um dia vir a ter repercussões gravíssimas em todo o mundo. Para não se pensar que há exagero apocalíptico nestas palavras, basta focar a atenção no Irão e na sua indisfarçável ambição de aceder à posse de armamento nuclear e, assim, poder ditar as suas regras no xadrez da região.
Só que o Irão é um estado islâmico enquanto que o Iraque de Saddam era um estado laico. A diferença não é tão despicienda como isso. Com o Saddam era sempre possível encontrar uma plataforma de diálogo negocial para equilibrar e moderar o seu poder no contexto regional, porque a lógica da sua ambição política, que não a dos valores, em boa verdade pouco ou nada diferia da dos seus parceiros ocidentais, ambas inspiradas, em suas linhas mestras, na filosofia política do estado laico. A dialéctica do discurso poderia ter levada à convergência de pontos de interesse comum, salvaguardando-se, quanto possível e dentro dos limites da razoabilidade, o orgulho ferido e o amor-próprio do ditador. Ou seja, de ambos os lados os negociadores poderiam ser fiéis discípulos de Maquiavel, mas se as suas posições conseguissem equilibrar a balança do interesse mútuo, a paz na região teria recebido um importante contributo.
Contudo, os EUA nunca estiveram interessados em tal coisa nem foi concedido a Saddam aspirar a qualquer expectativa esperançosa de participar numa saída política favorável ao equilíbrio estratégico na região. O facto é que, depois da sua fracassada tentativa de anexar o Kuwait, jamais lhe foi consentida qualquer possibilidade de franca e aberta conversação sobre o rumo a seguir, preferindo-se um surto reiterado de retaliações e boicotes económicos ao Iraque que não logrou qualquer efeito a não ser elevar o sofrimento da população do país a níveis inconcebíveis e em absoluto intoleráveis para a consciência do mundo ocidental. Acossado como um animal selvagem dentro do seu país, nem mesmo assim se pode dizer que Saddam ensaiou uma qualquer espécie de fuga para a frente, como ficou patente com a comprovada falsidade de todas as razões invocadas para a invasão e ocupação do país (presença de armas de destruição maciça e acolhimento de bases terroristas). Hoje, algumas bocas devem estar a amargar com a certeza consabida de que esta guerra imposta foi porventura das mais injustas e iníquas da história dos países nela envolvidos. Hoje, o ditador está a ser julgado, mas a consciência do mundo ocidental, se ela é ainda sensível aos valores do humanismo cristão e do racionalismo, deve sentir-se bem constrangida por saber impunes os verdadeiros fautores duma guerra e todo o seu cortejo de desgraças e infortúnio. Mas não se pense que estou a pretender branquear a feroz ditadura de Saddam Hussein. Só que os factos da actualidade estão a demonstrar que foi muitíssimo pior a emenda que o soneto.
Bem diferente, para não dizer virtualmente irredutível, é o diálogo com os estados islâmicos, como é o caso do Irão. Nesses estados, a religião islâmica tutela e inspira o poder político e todo o sistema social e económico, em grau tanto mais elevado quanto maior a leitura fundamentalista dos dogmas religiosos.
Na sua cegueira para, “à espadeirada”, derrubar Saddam e assim poderem controlar as fontes de produção petrolífera, de que depende a sua economia, os EUA ignoraram, ou menosprezaram levianamente, o Irão e toda uma ameaça que este país representava, que não era já apenas potencial mas claramente visível e pronta a manifestar-se. Com efeito, o Irão reiniciou há pouco as suas actividades nucleares e, ao mesmo tempo, os mais recentes discursos do seu Presidente não são propriamente apologéticos de uma política de paz no Médio Oriente; o Irão apoia grupos radicais islâmicos como a Jihad islâmica e o Hamas, além de ser muito hostil ao estado de Israel; apoia vários grupos no Iraque que estão a lançar o país no caos; e ao Irão não interessa minimamente um Iraque democrático e secular, como utopicamente pretende George Bush, porque isso iria incentivar as aspirações democráticas dos iranianos e ameaçar a sobrevivência do regime.
Está assim criada a confusão, com uma complexidade crescente e à revelia da intervenção bélica no Iraque, como se esta nada tivesse logrado senão o derrube do ditador. Dir-se-á, com razão, que os estrategos americanos se atiraram cegamente contra um tigre de papel, entretendo-se com um engodo que bem serviu os intentos da Al Qaeda, Irão, Síria e outros Estados da região.
Agora, os EUA e o Reino Unido deram-se conta do logro em que caíram e não sabem como descalçar a bota, com promessas já esboçadas de abandonar o Iraque e deixá-lo entregue a si próprio, destroçado, desmoralizado e com a sua economia de rastos, portanto, em muito pior situação do que no tempo de Saddam. Os EUA podem estar agora a apontar os binóculos para o Irão, mas é bem possível que os capítulos do próximo episódio se venham a escrever com tintas bem mais trágicas ainda. Entretanto, é todo o mundo ocidental que está a sofrer os reveses de tamanha imponderação e aventureirismo. Não é com a espada que se vai conseguir resolver aquilo que alguns consideram ser um conflito de civilização. É ao património cultural da humanidade que se terá de ir buscar a bússola para dar um outro rumo à história.
Tomar, 18 de Março de 2006
Adriano Miranda Lima