SOBRE A DISCUSSÃO DE FUNDO QUE TEM SIDO EVITADA
Não é possível esconder que, vista de Varsóvia, a situação política portuguesa (...) é intrigante. Dois ex-presidentes da República apelam ao actual Presidente para que demita um Governo com maioria parlamentar. O Provedor de Justiça fez um apelo semelhante.
Com o devido respeito, não compreendo esses apelos. Um Governo com maioria parlamentar deve cair por procedimentos parlamentares – não por manifestações de rua, ameaças de violência ou insultos ao Presidente da República. Também não compreendo bem a ideia de convocar congressos com a esquerda radical para reclamar mais democracia. A democracia, para a esquerda radical, sempre foi a ditadura da esquerda radical, exercida na rua, em nome da democracia.
É verdade que existe um descontentamento geral no país e que o actual Governo já não dispõe de apoio popular?
Não sei, embora as manifestações (...) não pareçam corroborar essa estimativa. Mas, a ser verdade, o líder da oposição democrática, o PS, tem um caminho aberto à sua frente: deve apelar directamente aos deputados do PSD e do CDS para retirarem o seu apoio ao Governo. Deve propor-lhes uma plataforma de ampla coligação como base de um futuro Governo. Este poderia emergir como proposta do actual Parlamento ao Presidente da República, ou resultar de eleições antecipadas - que poderiam ser convocadas pelo Presidente quando a actual maioria parlamentar retirasse o seu apoio ao actual Governo.
Tudo o resto me parece um pouco peculiar. A ideia de que o Presidente deve demitir o Governo sempre que um coro de protestos se ouve nas ruas e na comunicação social, ou/e que uma sequência de notáveis apela à queda do Governo – essa ideia não é muito frequente numa democracia constitucional.
Se posso dar um conselho ao Partido Socialista, que obviamente não tem sequer de o ouvir, eu aconselharia a que se afastasse da extrema-esquerda – como de facto fez, pela ausência do seu líder no congresso acima referido – e que se dirigisse aos Deputados e, sobretudo, aos eleitores do PSD e do CDS. E que lhes dissesse, por exemplo, que admite as responsabilidades no despesismo que conduziu à vinda da troika, mas que a política do actual Governo é baseada numa engenharia financeira dirigista que ignora a realidade económica e social do país.
O PS tem preferido acusar de neoliberalismo a política do actual Governo. Parece-me difícil que uma política que aumenta os impostos seja neoliberal. Mas o nome não importa muito. Só que, ao chamarem-lhe neoliberal, estão a sugerir que a questão é basicamente entre famílias políticas e não entre a realidade socioeconómica nacional e projectos de engenharia financeira dirigista que a ignoram.
Devo imediatamente acrescentar que a referência à realidade nacional também não é conclusiva e contém os seus próprios perigos. Ninguém quer regressar ao "orgulhosamente sós" do Doutor Salazar e não convém acordar forças nacionalistas adormecidas. Mas parece incontornável discutir o que melhor corresponde ao interesse nacional no actual contexto da União Europeia e do seu (sub)projecto de moeda única.
Essa é a discussão que tem sido evitada entre nós – e por razões compreensíveis: é uma discussão tremendamente complexa e cheia de incógnitas. Não deve ser confundida, aliás, com um discussão, também necessária mas parcelar e subsidiária, sobre a aplicação dos fundos europeus. Um dia, aquela discussão mais funda vai ter de ser enfrentada. Entre nós e noutras paragens.
O Presidente Hollande, por exemplo, acaba de criticar a Comissão Europeia por ter emitido recomendações de reformas estruturais a França, em troca de aceitar mais um adiamento de dois anos no cumprimento das metas do défice orçamental. Disse François Hollande que "cada país é que deve decidir a sua política económica, caso contrário não há soberania". No mesmo dia, líderes democratas-cristãos alemães criticaram o Presidente francês acusando-o de estar a "minar o projecto europeu".
Horas depois, numa conferência de imprensa em Paris com a Chanceler Merkel, François Hollande declarou que ambos os países reafirmaram o seu acordo em prosseguir na criação de um "autêntico governo económico europeu". Não se compreende, francamente, como poderá a França continuar a reclamar soberania ao mesmo tempo que defende um governo económico europeu.
Estas e outras razões geram crescente cepticismo dos eleitorados relativamente às políticas ditas europeias. Os partidos constitucionais-pluralistas da Europa continental têm até agora reagido a esse cepticismo com declarações solenes contra os extremismos nacionalistas e xenófobos. Essas declarações são basicamente acertadas. Mas se os partidos constitucionais-pluralistas não escutarem os eleitores e não ponderarem as razões do mal-estar crescente, devemos recear seriamente que os extremismos sejam os grandes beneficiários das actuais dificuldades na zona euro.
3/06/2013
João Carlos Espada