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A bem da Nação

“DEUS GUARDE O HOMEM DE MULA QUE FAZ «HIM» E DE MULHER QUE SABE LATIM” - 1

 

 

É de D. Francisco Manuel de Melo a citação do aforismo supra, que encontrei em texto escrito pelos anos oitenta, entre a velha papelada a rasgar para um efeito de alargamento de espaços de arrumação numa nova casa, estreita em dimensões. Ao reler os velhos autores, nele transcritos, senti igual prazer na constatação de uma literatura que, se não tem a dimensão humanística dos Shakespeares ou dos Montaignes de outras literaturas mais providas de criatividade, riqueza verbal e conhecimento profundo da natureza humana, não deixa de demonstrar o seu cunho de humor e graça, até na superficialidade, brejeirice ou radicalismo das posições machistas dos poetas e prosadores de um país educado na prepotência e na servidão pouco esclarecidas.

 

E a verdade é que tais posições extremistas ainda hoje vigoram, mais ou menos encobertamente, incomodados os tímpanos das gentes com as vozes esganiçadas das Anas Gomes do nosso e do Parlamento Europeu, dizendo coisas, mostrando afectos de sensibilidades altruísticas e despeitos de menosprezos partidaristas, aliás de parceria com os colegas homens, cuja argumentação uniformemente incisiva transformou a nossa Praça Parlamentar em Praça da Figueira antiga, que àquela deu lugar. Excluo, é certo, deste apanhado, todas aquelas mulheres que se impuseram conscienciosamente, bem rodeadas da consideração geral, numa época em que mal pareceria ao homem que se apresenta modernamente progressista, pelo menos exteriormente, - os machismos reservados mais discretamente ao interior caseiro - ironizar sobre as mulheres mais sabedoras, como o fizeram D. Francisco Manuel de Melo, Garrett, Camilo, a seu tempo, conscientes da falta de concorrência nos seus posicionamentos intelectuais. As mulheres mais afoitas lá se foram amanhando em busca das luzes de que careciam, marquesas de Alornas infelizes e de pouca ocupação doméstica, o que lhes permitiria levantar voos, quais Ícaros em busca do sol. As outras faziam o que já a Bíblia lhes mandava fazer, e se transgrediam, eram punidas, também por preceito bíblico, tratamento que ainda hoje se pratica em várias partes do mundo, apesar das pedradas que Cristo impediu na sua altura, sem efeito, contudo, sobre as pedradas modernas, em que mulheres morrem por lapidação, nestes tempos de infidelidades fáceis e de fundamentalismos defensores da pureza, por meio da barbárie.

 

Transcrevo o texto, dos anos oitenta:

 

«A Mulher Portuguesa em Discurso Directo»

 

A Literatura Portuguesa conserva, desde os tempos da sua formação, autênticos retratos de Mulher, impregnados de subtis facetas da psicologia feminina, que muito nos informam sobre os hábitos, vivências e sentimentos da mulher rural. É nas “Cantigas de Amigo” do nosso lirismo medieval que tais retratos figuram, em poemas monologados ou dialogados, em que, todavia, o sujeito da enunciação jamais se confunde com o do enunciado ou sujeito poético, sendo aquele, o mesmo trovador que nos seus cantares de amor refere em termos pessoais, mau grado o convencionalismo do cliché occitânico, queixumes ou exaltações amorosas originados na indiferença ou na beleza distante da sua “senhor”. Nos “cantares de amigo” é a donzela que se exprime, e o trovador – o sujeito da enunciação – soube vestir a pele da donzela para a projectar em quadros em que o amor se multiplica na expressão de tristezas, alegrias, ciúmes, saudades, despeitos, receios…

 

Visão arguta do Homem sobre a alma feminina, expressão de uma superioridade intelectual masculina, numa sociedade feita em prol do homem, e desde sempre votada à exploração da mulher, puro objecto fisiológico, para efeitos de procriação, prazer masculino ou elemento de trabalho mecânico, sem qualquer concessão aos seus valores espirituais, mau grado os lirismos literários que destacam tal espiritualidade feminina e que o próprio homem põe em causa na poesia satírica da mesma época, ao desmistificar o convencionalismo da temática amorosa invariavelmente centrada na beleza da Mulher ou no sofrimento que os seus desdéns causam no Homem, levando-o a ambicionar a morte. Eis dois exemplos bem conhecidos de críticas que, desmascarando a retórica de encarecimento da beleza feminina ou da coita masculina, as põem em causa através da troça:

 

De João Garcia de Guilhade, a desmistificação do ideal de beleza feminina:

 

«Ai, dona feia! Fostes-vos queixar
que vos nunca louvo em meu trovar;
mas ora quero fazer um cantar
em que vos louvarei por esta via;
e vede como vos quero louvar:
dona feia, velha e sandia!»

«Ai, dona fea! Se Deus me pardon!
pois avedes [a] tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!»

 

(continua) 

 

 Berta Brás

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