AS VINHAS DA IRA
As duas guerras mundiais, que devastaram a Europa numa escala desproporcionada, foram as duas seguidas de uma espécie de nova belle epoque, a preencher o intervalo entre calamidades.
Entre as mudanças sociais decorrentes da primeira, a libertação das mulheres aparece como um facto dos costumes e dos valores.
Foi geralmente atribuída essa mudança às funções que inevitavelmente foram chamadas a exercer, vista a mobilização dos homens pelos exércitos e urgência de mão-de-obra, e do aprender a fazer, na retaguarda.
As oficinas, o campo, a casa, os hospitais, e assim por diante, encheram-se de uma criatividade feminina que, para facilitar a movimentação, e como foi observado, cortaram o cabelo e encurtaram as saias.
Uma nova atitude em relação às ascendentes que tinham sido viúvas de homens vivos que partiram para as tarefas do Estado nas lonjuras a descobrir, ou para onde o mercado de trabalho permitisse aos homens que emigraram que enviassem as remessas com que sustentavam a família que ficava e equilibravam a balança de pagamentos estaduais.
A crise de 1929, que antecedeu como anúncio a guerra seguinte, e que, como agora, teve causa relevante nos EUA, foi também caracterizada por uma explosão sem regra que não fosse a eficácia do enriquecimento especulativo.
A crise do comércio, o desemprego, o desespero, as tragédias, multiplicaram-se, com suicídios de grandes interventores no mercado.
Foi neste ambiente que Steinbeck, agora lembrado, escreveu As Vinhas da Ira, e que John Maynard Keynes publicou a Teoria Geral.
Felizmente para os EUA, o presidente Roosevelt, que evidentemente escutava os economistas, sabia que esta não dispensava, antes necessitava do estadista que, no caso, criou um conceito estratégico, o New Deal, assumido com essa natureza, porque, disse, tinha um encontro com um desafio de história (Barreau e Bigot).
A pergunta que a memória anda a suscitar é se As Vinhas da Ira, que corresponderam literalmente ao levantamento da circunstância social, não voltarão a ser uma leitura útil para quem governa em tempos de crise, atraindo-os para a realidade e não apenas para as proposições auxiliares dos analistas técnicos, acontecendo que Roosevelt nunca conheceu pessoalmente Keynes.
Na situação gravíssima da Europa, sobretudo a pobre, não faltam já páginas de novas Vinhas da Ira escritas por quem vive as circunstâncias reais da população, diferentes em cada comunidade, mas que são desconhecidas pelos qualificados técnicos que percorrem, decidindo, sobre os povos que não conhecem.
Isso não os impede de convictamente opinarem com decisão sobre a reforma de cada Estado, ou refundação do Estado, seja isso o que for, porque o consequencialismo visível, que envolve todos os outros, é o afundamento progressivo do Estado, da qualidade de vida, e das esperanças de futuro.
Alguma modéstia académica, e a leitura d'As Vinhas da Ira que vai sendo escrita, ou discursada, alguns dos excelentes cientistas que temos e não emigraram talvez pudessem enriquecer o processo de decisão, e sem dúvida diminuindo os custos da administração paralela.
As intervenções que constantemente fazem, tornando públicas as suas advertências e conselhos, correspondem a um ensino antigo, segundo o qual o acto de governar exige a coordenação da escuta do conselho com a responsabilidade de decidir.
A ordem e serenidade das vítimas dos erros da política de novo-riquismo demonstram que o civismo é um valor que resiste à quebra do valor da confiança na governança que lavra por todo o Ocidente.
É seguramente mais inquietante que pareça necessário afirmar que os responsáveis pela ordem garantem a governança, isto é, o civismo da população de que aquela depende, do que manter a certeza de contar com a boa ordem porque o valor da confiança não foi afectado pelo enfraquecimento da legitimidade do exercício.
Recentes eleições num país mais afectado pela crise, que é a Itália, demonstram que é a falta de esperança na legitimidade do exercício dos eleitos que já afecta o regime, visto pelos outros países.
5 de Março de 2013