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A bem da Nação

A 2ª ARMADA PARA A ÍNDIA

 

 

Vão partir de Lisboa as duas primeiras armadas que após a descoberta do caminho marítimo para a Índia de novo sulcaram a mesma rota, deixando vestígios na passagem pela costa oriental de África, sem con­tudo criarem feitorias estáveis.

 

D. Manuel, no imediato actuar, esteve à altura do momento histó­rico iniciado por esse feito.

 

Uma vez aberta a estrada pela qual se poderiam canalizar para a Europa as rique­zas do Oriente, libertas dos sucessivos intermediários por cujas mãos passavam até então, desde a Índia ao norte de África, impunha-se a organização de numerosas armadas.

 

O rei não descurou o magno assunto, pondo ao máximo rendi­mento o trabalho dos estaleiros. Chega a parecer inconcebível como tanto se conseguiu produzir em tão pequenos espaços de tempo. Não só o número de navios construídos foi enorme, como também a preparação de pilotos e mestres de marinharia, em tal ritmo, faz pasmar. No escasso tempo de seis meses estava pronta a partir uma das maiores armadas que jamais saiu do porto de Lisboa com destino ao Oriente. Impunha-se, com efeito, que a nova armada a enviar à índia fosse poderosa, pois era razoável admitir da parte das autoridades indianas o receio desse povo desconhecido, capaz de mandar tão longe os seus navios. E daí seria admissível uma maior preparação bélica a esperá-los, quando lá voltassem. Já João de Barros interpretando o pensamento de D. Manuel assim raciocinava: «o mais seguro e melhor era ir logo poder de naus e gente, porque nesta primeira vista que sua armada desse àquelas partes, que já ao tempo de sua chegada toda a terra havia de estar posta em armas contra ela, convinha mostrar-se mui poderosa em armas e em gente luzida».

 

E, em conselho, resolveu-se mandar nova armada às terras desco­bertas no Oriente, levando como capitão-mor Pedro Alvares Cabral.

 

A fina flor da gente lusa acompanha Pedro Alvares Cabral, nas naus e caravelas da sua armada de treze navios, passando de mil e duzentas pessoas, entre mareantes e homens de armas, «toda gente escolhida, limpa, bem armada e provida pêra tam comprida viage».

 

Entre os capitães seguem os nomes mais representativos da marinha de Portugal: Nicolau Coelho, companheiro de Vasco da Gama na primeira viagem; Bartolomeu Dias, o descobridor do Cabo da Boa Espe­rança; Sancho de Tovar (ou Toar) e outros igualmente célebres, refe­rindo-se apenas estes por terem ficado mais infimamente ligados aos feitos de África.

 

Esta armada interessa sobremaneira à História de Moçambique, pois no seu regimento impunha o rei a Bartolomeu Dias a missão de procurar Sofala. Cada armada, ao partir, levava rigidamente marcada a sua finalidade, não se deixando aos capitães absoluta liberdade de acção.

 

Vasco da Gama partira com a missão de descobrir a Índia e apesar do nome de Sofala ser conhecido já em Portugal, pela fama do seu ouro, não se deteve a procurá-la nem à ida nem à volta. Poderia alegar-se ignorância da sua posição, quando passou para o norte navegando directamente de Inhambane a Quelimane; mas tal ignorância seria inadmissível na viagem da volta, depois de tantas informações colhidas na ilha de Moçambique. E, contudo, Vasco da Gama desce também o Índico, sem se preocupar em buscar Sofala. Não era essa a sua missão, outros voltariam. Para ele bastava a glória de ter chegado às Índias. Também algumas vezes aconteceu terem os regimentos das armadas uma parte secreta, só conhecida dos capitães e dos seus mais ínfimos cooperadores. Se tal se dissesse do regimento desta segunda armada, não se cairia nos domínios da fantasia histórica, como se vai ver.

 

Nesta armada pela vez primeira vão às partes do Oriente, aos lados dos capelães dos navios, um vigário e alguns missionários para se fixarem nas ferras da índia, onde tal fosse possível. Coube à Ordem Franciscana essa honrosa missão, enviando um grupo de oito religiosos, levando como superior a Frei Henrique, mais tarde Bispo de Ceuta e Primaz de África, que voltou à cidade de Évora, de cujo convento franciscano saíra para seguir na armada, para ser o segundo Bispo Coadjutor do Cardeal Infante D. Afonso, filho do rei D. Manuel.

 

Preparada a armada para partir, vai o próprio rei à capelinha do Restelo assistir às cerimónias religiosas, para entregar no fim por suas próprias mãos ao capitão-mor o estandarte da Ordem de Cristo, «sinal de nossas temporais e espirituais vitórias». O embarque faz-se a seguir, largando a armada no dia seguinte — dia 9 de Março de 1500

 

TERRAS DE SANTA CRUZ

 

De Lisboa tomaram rota por as ilhas de Cabo Verde, onde fariam aguada, quando, estando perto, um temporal espalhou os navios, afas­tando-se tanto o barco comandado por Luís Pires, que este resolveu regressar a Lisboa.

 

Ficaram, assim, onze unidades, que, depois da aguada em Cabo Verde, onde chegaram com treze dias de viagem, por consequência a 21 de Março, seguiram a linha de navegação já conhecida, afastando-se assim das regiões de calmarias e buscando sempre a direcção do poente. Tanto continuaram nessa direcção, tanto, que aos 24 de Abril tinham à vista a terra firme, depois chamada da Santa Cruz. Estava descoberto o Brasil.

 

Ocorreria neste momento o ensejo de se pôr a questão: se o desvio para oeste assim tão excessivo teria sido casual ou, muito ao contrário, o cumprimento de uma daquelas instruções secretas dos regi­mentos das armadas. Com efeito, a corrente moderna de opinião his­tórica tem como certo o conhecimento da existência das terras do Brasil desde o tempo de D. João II, única forma plausível de explicar a tei­mosia deste rei na questão do Tratado de Tordesilhas.

 

Texto absolutamente comprovativo não existe, mas há valiosas alusões que nos asseguram a ida àquelas paragens de outros navegadores portugueses antes de Cabral. A insatisfação de D. João II perante a resolução do Papa Alexandre VI, quando este, a pedido dos Reis Católicos, depois da descoberta da América, separou por um meridiano os campos de ação de portugueses, para Oriente, e de Castelhanos, para Ocidente, ficaria também fora de interpretação lógica, se não houvesse qualquer conhe­cimento secreto daquelas terras. E curioso notar que nesse diploma pontifício dirigido ao rei Fernando Católico em 4 de Maio de 1493 não se faz qualquer alusão a Portugal nem ao seu rei.

 

D. João II, ao saber de tal resolução, em que se dividia o mundo por um meridiano situado a umas 100 léguas a oeste de Cabo Verde, não concordou com este número e propôs 370 léguas, isto é, mais 270 contadas a partir das cem.

 

Como explicar esta atitude tão pouco conciliadora se D. João II não tivesse já algum conhecimento, mesmo vago, das ferras ocidentais?

 

Os Reis Católicos concordaram, por se não verem prejudicados na sua expansão, evitando assim o azedar de uma questão que poderia levar a grave conflito. D. João II triunfou, ganhando para a sua Pátria o imenso Brasil, naquele dia 7 de Julho de 1494, em que foi assinado o Tratado de Tordesilhas.

 

Nada aqui se dirá do acontecido na chegada a um novo continente, por ser nosso único objectivo a terra de Moçambique. Deixemos partir para o reino a nau do capitão Gaspar de Lemos com a nova para D. Manuel e sigamos a armada em busca dos mares do sul.

 

DO BRASIL A SOFALA

 

Os onze navios que ficaram constituindo a frota de Pedro Alvares Cabral deixaram as terras da Santa Cruz aos 2 de Maio e meteram-se à grande travessia, tomando o rumo do Cabo da Boa Esperança.

 

Três semanas navegaram com bom mar até que no dia 23 se come­çou a empolar aparecendo então das bandas do Norte o espesso negrume de um «bulcão» seguido de furioso vendaval. Foi tão violenta a tempes­tade e «com tanta força de vento e tão de súbito, que à vista uns dos outros soçobraram quatro naus, sem delas escapar cousa viva».

 

Ninguém como João de Barros nós deixou, dessa hora trágica, mais bela descrição:

 

Posto que o auto deste ímpeto do vento foi a todos a cousa mais espantosa que quantas tinham visto, por se verem uns aos outros junta e tão miseravelmente perder; muito mais temeroso lhe pareceu verem sobre si uma escuríssima noite que a negridâo do tempo derramou sobre aquela região do ar, de maneira que uns aos outros não se podiam ver, e com o assoprar do vento muito menos ouvir. Somente sentiam que o ímpeto dos mares às vezes punha as naus tanto no cume das ondas, que parecia que as lançava fora de si na região do ar, e logo subitamente as queria sorver e ir enterrar no abismo da terra.

 

Perto do Cabo da Boa Esperança, onde se deu a tragédia, daquele, cabo que ele conseguira pela primeira vez ultrapassar anos antes, ali ficou para sempre sepultado com a sua nau o grande Barfolomeu Dias que trazia agora ordem de descobrir Sofala.

Das sete naus que se salvaram, uma voltou para trás, continuando as outras seis a sua viagem apesar de bastante sacrificadas.

A 16 de Julho chegaram ao parcel de Sofala, à vista já das ilhas Primeiras.

 

NOTÍCIAS DE SOFALA

 

A lendária Sofala, já conhecida pelos portugueses devido à fama do seu ouro, estava ali perto. As primeiras notícias por eles ali colhidas foram transmitidas à História por um dos pilotos da armada de Cabral, cujo nome até se desconhece. A sua narrativa vai-nos servir de guia, como já serviu a João de Barros, a Fernão Lopes de Casfanheda e a outros que ao assunto se têm referido.

Conta-nos o nosso informador, em sua linguagem simples mas colorida, que ao passarem ao largo de Sofala avistaram duas ilhas junto à povoação. Mas, em vez de se resumir a narração que nos transmitiu o primeiro contacto dos portugueses com Sofala, será preferível deixar falar quem assistiu aos factos. Um resumo faria perder a graça ingénua dos exageros da primeira página da História de Sofala; deixemos, pois, falar o marinheiro da armada de Cabral, modificando-lhe apenas a sua ortografia e a pontuação:

 

Continuando a nossa viagem, chegámos diante de Sofala, onde há uma mina de ouro, e achámos junto a esta povoação duas ilhas. Estavam aqui duas naus de mouros que tinham carregado ouro daquela mina, e iam para Melinde, os quais, tanto que nos avistaram, começaram a fugir e lançaram-se todos ao mar, tendo primeiro alijado o ouro, para que lho não tirássemos. Pedro Alvares, depois de se ter apoderado das suas naus, fez vir ante si o capitão delas, e lhe perguntou de que país era, ao que respondeu que era mouro, primo de El-Rei de Melinde, que as naus eram suas, e que vinha de Sofala com aquele ouro, trazendo consigo sua mulher e um filho, os quais se tinham afogado querendo fugir para terra. O capitão-mor soube que o mouro era primo de El-Rei de Melinde (o qual era muito nosso amigo) se desgostou sobremaneira, e fazendo-lhe muita honra, lhe mandou entregar as suas duas naus com todo o ouro que se lhe tinha tirado. O Capitão Mouro perguntou ao nosso se trazia consigo algum Encantador, que pudesse tirar a outra porção que tinham deitado ao mar, ao que ele respondeu que éramos Cristãos, e que não tínhamos semelhantes usos. Depois tirou o nosso Capitão-mor informações das cousas de Sofala, que ainda neste tempo não era descoberta senão por fama, e o Mouro lhe deu por novas que em Sofala havia uma mina muito abundante de ouro, cujo Senhor era um rei Mouro, o qual assistia em uma ilha chamada Quíloa, que estava na derrota que devíamos seguir, e que o parcel de Sofala já nos ficava para trás. Com isto o capitão se despediu de nós, e continuámos a nossa Jornada.

 

Foram estas as primeiras informações colhidas in loco pelos des­cobridores portugueses a respeito de Sofala, atractivo primordial da costa oriental de África para quem de tão longe vinha em procura das fabulosas riquezas do Oriente. Passaram a todos os historiadores, uma vez expurgadas dos exageros e contradições que uma simples leitura nos revela.

 

A DESCOBERTA DE SOFALA

 

A 20 de Julho chegou a Moçambique a armada de Pedro Alvares Cabral, bem necessitada de mantimentos para a tripulação e de arran­jos nas naus. Foram recebidos sem hostilidade pela gente da ilha, fazendo pacificamente a sua aguada e tomando piloto para Quíloa, onde estavam no dia 26. Aqui, as dificuldades esperavam-nos: tendo sido tomados por corsários, não lhes permitiram comerciar, nem con­seguir alcançar informações precisas sobre o «trato de Sofala». O que por Melinde e pela Índia sucedeu a esta segunda armada não interessa ao nosso trabalho e longo seria narrá-lo. Em Janeiro seguinte iniciou-se o regresso à Pátria, não se conhecendo com exactidão a cronologia dessa viagem. Sabe-se apenas com precisão que voltaram a Moçambique, onde se tomou uma resolução que muito nos interessa. Foi ali resolvido dar cumprimento às determinações do regimento dado por El-Rei a Barfolomeu Dias e seu irmão Diogo Dias, pelo qual lhes competia separarem-se da armada para irem à descoberta de Sofala.

 

Pedro Alvares Cabral encarregou então deste trabalho a Sancho de Tovar, fornecendo-lhe para esse efeito um pequeno navio, pois a nau de que este fora capitão naufragara dias antes, não longe de Mombaça, por ter dado «em um baixo por má vigia»; deu-lhe um intérprete e um piloto, mandando-lhe que a seguir partisse para Portugal.

 

Como o piloto cronista, de que já se falou, pertencia à tripulação de uma das naus do comando de Cabral, ficámos sem saber o dia em que Sancho de Tovar aportou a Sofala, mas apenas a chegada da armada a Lisboa, a 31 de Julho, e a do navio de Tovar, no dia seguinte.

 

Sabe-se dessa primeira exploração a Sofala que Tovar foi recebido com toda a cordialidade pelo chefe Issufo, a quem presenteou, recebendo em troca ampla autorização para os portugueses frequentarem o porto, como os mouros faziam, e nele desenvolverem seu comércio de trocas.

 

Sancho de Tovar ao chegar a Lisboa pôde também informar que Sofala «era uma pequena ilha na embocadura de um rio; e que o ouro que ali vem é de uma montanha aonde está a mina; é povoada de mouros e gentios que resgatam o dito ouro por outras mercadorias».

 

A segunda armada enviada à índia, onde consolidou as nossas posi­ções, deixou assim, ao passar pela costa oriental de África, mais uma parcela conhecida - Sofala, a lendária Sofala do ouro dos reis bíblicos.

 

In “Quadros da História de Moçambique” – Dr. Alcantara Guerreiro, 1948

 

Rio de Janeiro, 09/02/12

 

 Francisco Gomes de Amorim

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