CONTAGEM DECRESCENTE
Foi a proposta comemorativa dos 125 anos de publicação de “Os Maias” e dos 40 da fundação do “Expresso”: continuar com a história d’ “Os Maias” do pobre do Eça, que estrebucha na tumba, em renovada agonia, pela obscenidade da ofensa ao seu génio, criador dessa obra prima. E os escritores que aceitaram a incumbência – à maneira de escolinha primária, em que se testa a criatividade das criancinhas mandando-as continuar os enredos das historinhas lidas (o que não é um mau exercício escolar, aliás) - consideram-se gente de bem, gente da moral e da crítica dos costumes nacionais. Bem libertos de autocrítica, na arrogância de todas as permissividades, a garantir todas as capacidades.
Estamos nitidamente na época de todas as traições, a de um Acordo Ortográfico que atraiçoou a língua mãe, a da diluição de conceitos e de desrespeito por homens, animais e coisas, começando pelas florestas que vamos destruindo sem pejo. A última traição é esta – a do seguimento da acção d’ “OS MAIAS” segundo as plumas deambulatórias dos efabuladores convidados.
É certo que a proposta do “Eça Agora” se circunscrevia a “Os Novos Maias”, em princípio, pois, recriando figuras a partir das figuras de relevo nacional, já caricaturadas na televisão, mais ou menos despudoradamente, por actores ou ícones, reproduzidas as vozes e as figuras com grande eficácia, para o riso alvar, que é geralmente o nosso, mais pronto a saborear o que é imediato à nossa compreensão, a intuir o sentido do traço irónico mais subtil.
Mas “Os Novos Maias”, afinal, estão, nas obras tratadas – salvo, em parte, as narrativas contidas no volume 6º - de Gonçalo M. Tavares - brincalhona e chocarreira e com a amplitude do seu filosofar sintético habitual - e de Clara Ferreira Alves, com a recriação de um enredo em torno de um pretenso neto de Carlos da Maia, pretexto para vazar a sua arte e vivência pessoal de viajante de vários mundos e a sua crítica pautando-se, ao modo queirosiano, pelo desdém intelectual por uma população no seu geral destituída do condimento espiritual que distingue os homens – “Os Novos Maias” estão no seguimento dos “velhos”, e isso é que me parece abusivo e denunciante daquilo que Vasco Pulido Valente no Jornal “Público” de 17/8 - “A Atracção da Asneira” – chama de revelador de “abismos de ignorância e de estupidez, que não se imaginariam em qualquer outra parte do mundo civilizado”.
Assim, a narrativa de José Luís Peixoto, no volume 4º, (os três primeiros constituindo a obra “OS MAIAS”) – “Depois de tudo, antes de alguma coisa” – (após um “Prefácio” e uma “Nota Prévia” explicativos) - gira, na 1ª parte, à volta da corrida para o americano do final de “Os Maias”, americano que conseguiram apanhar, bem a tempo do jantar no Bragança - pretexto para a constatação do desleixo e do vazio nacionais habituais - do início de uns amores com uma afrancesada e adúltera Claudine; uma 2ª parte, 10 anos depois, com Ega mais nostálgico e uma Claudine a reproduzir os desesperos anteriores da condessa Gouvarinho, na humilhação dos amores findos, o velho Dâmaso, oco e adoentado; uma 3ª parte baseando-se num quiproquó sobre a notícia - o “alguma coisa” do título – a morte de Dom Carlos e de Luís Filipe, do conhecimento do republicano Ega; o regresso de Maria Eduarda, amiga de Claudina, da estupefacção aterrada de Carlos. A fuga de Carlos para Santa Olávia, como refúgio, e como imitação da fuga de Maria Eduarda para França, após o reconhecimento do incesto, segundo a diegese queirosiana
Segue-se, ainda no volume 4º, “Tudo o que é chama”, por José Eduardo Agualusa, até aos anos vinte, pretexto para um puxar a brasa à sua sardinha, do escritor angolano, com cenas de corrida com flamingos e seu trocadilho com flamengos, os boers da colonização sul africana, de cenas de caçada, de graçolas, de histórias de desbravamento angolano com a indispensável acusação da acção portuguesa, para edificação dos dois amigos Carlos e Ega, e uma 3ª parte com os dois irmãos Carlos e Maria Eduarda vivendo assumidamente os seus amores incestuosos, a descoberta de Rosa, com fuga e zanga, mas o seu regresso final à casa colonial da mãe e do tio, na Restinga do Lobito.
O 5º volume, preenchido por José Rentes de Carvalho e Mário Zambujal, em, respectivamente, “O Rio somos nós” e “O imenso pulo de Carlos da Maia”. Mistura o primeiro as figuras de Carlos e Ega - e simultaneamente Jacinto e Zé Fernandes em Tormes - com uma acção localizada numa aldeia do Alto Douro, onde Carlos recebe um Ega, rezingão e desconfiado, mas saboreando os bons pratos caseiros, em breves referências impacientes ao “Esteves” da ditadura e à PVDE da protecção ao regime. Todavia, apesar de algum vigor dos seus comentários e da sua subida para a aldeia num burro, Ega morre, incoerentemente, durante essa breve estada junto do amigo, em 1937, Carlos no ano a seguir. Maria Eduarda já morrera, contara Carlos, a filha Rosa fora informada pela mãe, do caso fatal por eles vivido.
O livro de Mário Zambujal põe a personagem Carlos a narrar as suas histórias de vida em primeira pessoa, num tom por vezes displicente e observação grosseira que não se coaduna com a personalidade discreta e nobre do “belo cavaleiro da Renascença”. Uma vida aventurosa que passa pela Índia e regressa aos braços de uma Laura que um dia lhe mostrou o retrato da mãe, no qual reconheceu a condessa de Gouvarinho, e portanto Laura como sua filha:
«Martela-me a cabeça um batuque de contas. Sempre fui bom na aritmética e obtenho o resultado: Laura nasceu nove meses após a tarde em que a Gouvarinho e eu rebolámos no tapete persa!
- Que foi? Estás pálido.
- Nada. Água. Tenho sede.
Levanto-me e corro à cozinha, bebo, bebo, molho a cara no jorro da torneira. Nada apaga o lume dentro de mim. Meu Deus! Então Laura é… minha filha? Recuso-me a acreditar mas contas são contas. Choro. Outra vez tombado, inadvertivamente, nas malhas vergonhosas do incesto? Pior agora, a Maria Eduarda era meia irmã, desta sou pai por inteiro!»
Falso alarme do assustado Carlos. A Condessa Gouvarinho era apenas mãe adoptiva, Laura era filha da cozinheira da condessa, que morrera de parto.
«O alívio deu-me para correr e pular em toda a volta do quintal», a justificação do título do conto., que prossegue com a perseguição da PVDE, já a Alemanha invadira a Polónia.
O “Ainda o apanhamos! Ainda o apanhamos!» do remate em paralelo com o final d’ OS MAIAS refere-se ao comboio que não chegaram a apanhar, na sua fuga. Mas também não seriam presos.
O sétimo volume é constituído pelo estudo de Carlos Reis “Introdução à leitura d’ “Os Maias”.
O projecto valeu como difusão de uma obra imperecível e juntamente com um estudo que ajudou gerações de alunos e professores. Isso bastaria como homenagem. O resto não é sério, nem é a sério.