CONTOS REFRATÁRIOS
I
Burro Inteligente
Da estrada principal. onde se situava a minha casa em Caneças, olhava lá no cimo da Serra em frente e via uma casa pequenina, isolada, qual farol numa falésia.
Também há faróis em ilhas!
À noite então era mesmo um farol, com luz tremente na escuridão.
Lá vivia o Compadre Quim, assim conhecido no povoado em baixo, onde descia para se abastecer na velha mercearia do Senhor Zé.
O acesso era um só!
Um caminho, nem largo, nem estreito, atapetado de burgalhau batido na terra com um maço. Era às curvas para facilitar a descida e a subida.
O meio de transporte nas operações de descida e subida era o velho burro, Tonho de seu nome.
Todos os dias a operação era feita quatro vezes. De manhã, perto do almoço, e de tarde, à hora do tea, hora sagrada para o Compadre Quim.
O Compadre fora estivador nuns estaleiros de Liverpool. Adquiriu o vício do five o’clok tea. Muito british!
Só que o tea era o muito português copo de tinto na tasca do Manel.
O Compadre confidenciava-me que os ingleses tinham o chá das cinco horas, mas, também tinham hooligans e bebedeiras de se lhes tirar o chapéu e eram o povo tido por muito civilizado.
Ao que eu lhe respondia que meia dúzia de anormais não caracterizam um Povo e a sua Cultura!
O Compadre aquiescia com um gesto contemporizador, mas não deixava de ficar bem claro que era português e que os portugueses, apesar de não terem a cultura de alguns povos estrangeiros, segundo a opinião de muitos, não deixavam de ser pessoas cordatas e ordeiras. Um ferrenho patriota, este Compadre Quim!
Nas minhas várias conversas de copo de tinto na mão, fui conhecendo melhor este homem solitário e, afinal, inteligente e culto à sua maneira.
A cultura não se traduz em ser-se muito inteligente e dominador dos vários planos do conhecimento humano. Ser-se culto, traduz, acima de tudo, saber dominar as experiências vividas e tirar destas as lições que possamos transmitir e incutir nos que nos rodeiam.
A sabedoria é superiormente calma e humilde. Isso é que é ser culto!
O Compadre Quim, uma vez não desceu ao povoado e nós, todos o que estávamos habituados à sua presença quotidiana, estranhamente, sentimos a sua falta calma e conversadora. Falava baixo, sem alardes despropositados e sempre com um olhar directo, firme e brilhante.
Passou-se mais um dia sem que nos congratulasse com a sua presença. E reunindo-nos, pensámos que alguém teria de subir a Serra para saber o que se estava a passar.
Resolvemos passar à acção na manhã seguinte, mas, quando estávamos preparados para avançar, na hora do copo de tinto, o Tonho apareceu, como vindo do nada (ninguém se apercebeu que descera a Serra), a zurrar e a esgravatar o chão de terra do pátio da tasca do Manel, onde, de costume, ficava estacionado.
Dado o alarme, apercebendo-se que já o tínhamos entendido, o Tonho arrancou Serra acima pelo serpenteado de burgalhau.
O resto foi simples, Tonho encontrava-se à porta a esgravatar. A porta era pequena e ele, com o seu tamanho, não conseguia passar a ombreira.
O Compadre Quim estava caído no chão. Tinha tido um enfarte.
Descemo-lo, enquanto cá em baixo já estavam à espera os Bombeiros chamados pelo Ti Manel.
Hoje, passado o mau bocado e já recuperado, nas habituais conversas do five o’clok tinto, o Compadre Quim diz, maliciosamente, que o seu burro teve uma crise de inteligência, enquanto os nossos políticos inteligentes têm sucessivas crises de burrice…
Sintra, Agosto de 2013