Fartos de tanto chumbo, os liberais bateram com a porta da Assembleia e desligaram-se do «velho amigo» deixando-o desamparado. Marcelo recusou, entretanto, assumir a substituição de Américo Tomás na Presidência da República. Passados alguns dias, os mastins «convidaram-no» a ir passar uns tempos ao Palácio de Queluz donde só sairia quando Américo Tomás dissesse. Caetano teve que negociar a sua própria liberdade e remodelou o Governo substituindo tecnocratas por burocratas inqualificáveis. Pediu ajuda à «Brigada do Reumático» em vez de falar com os Capitães já em movimento e o caldo ferveu. Então, quando a corda estava já tão emaranhada que não havia ponta por onde pegar, os «militares de Abril» saíram à rua, cometeram a injustiça de tratarem Marcelo e Tomás por igual e deitaram o Ultramar para o caixote do lixo no Largo do Carmo. Passados 50 anos, a maior parte desses militares de Abril, ainda não acredita que foi manipulada por Moscovo.
Cada acção governativa de Marcelo foi um dedo apontado a cada defeito político de Salazar; dos defeitos de Marcelo é este texto fértil.
E agora? «Agora é tarde e Inês é morta» como disse Pedro I, Rei de Portugal. Será? Creio que a Democracia arranja solução.
Com Marcelo Caetano na liderança do Governo, a polarização política deixou de ser bi entre «regimistas» em torno de Salazar e o «reviralho» (PCP + nuvem quântica de oposicionistas) para passar a tripolar entre «marcelistas», «ultras» em torno de Américo Tomás e reviralho. Dois grandes temas em debate na Assembleia Nacional e fora dela: a legalização de Partidos políticos; a evolução política das parcelas ultramarinas.
Marcelo preconizava a «evolução na continuidade», e os seus «jovens amigos» - como se referia aos membros da «Ala Liberal» - queriam a evolução acelerada rumo à democracia e os «ultras» queriam o imobilismo, mais do que a continuidade.
PARTIDOS POLÌTICOS – Depois de breve discussão doutrinária, o assunto reduziu-se à eventualidade da legalização do PCP com os «liberais» a argumentarem que a melhor forma de liquidar o comunismo seria traze-los à critica geral, em vez de continuarem na clandestinidade a engordar aura que não mereciam. Mas os «ultra» não quiseram e o máximo que permitiram foi a criação de Associações Cívicas – SEDES como único «think tank»
que continua a existir.
ULTRAMAR – Foi o livro do General Spínola «Portugal e o Futuro» que trouxe para a praça pública a discussão sobre o Ultramar. Grande sucesso editorial, gerou amplo consenso, com excepção dos radicais: à direita, os «ultras» que queriam o «statu quo» e à esquerda, os russófilos queriam que as Colónias Portuguesas passassem para o domínio soviético (o que viriam a conseguir em 1975 pela mão do «camarada Vasco».
E a corda, em vez de esticar e partir, começou a enrodilhar-se…
Pedagogo de excelência, Marcelo Caetano dirigia-se a qualquer audiência com a maior facilidade. Assim foi que fez um programa na TV e nas Rádios a que chamou «conversas em família». Eram monólogos e não conversas nos quais abordava temas da actualidade política que cativavam quem o ouvia. Neste encurtamento da distância entre a população e o Governo, consta que alguém lhe disse algo como «quando Salazar falava ninguém percebia o que ele dizia, mas toda a gente entendia o que ele significava; quando o Senhor fala, toda a gente percebe o que diz, mas ninguém entende o que significa». Eis a diferença entre quem se sente dono da casa e quem se sente convidado; um, anda em frente, mas o outro tem que se acautelar e fazer jogos de cintura, ser cerimonioso. Salazar contava com a lealdade cega dos mastins, enquanto Marcelo tinha que acautelar as próprias canelas. Mas, apesar dos perigos muita coisa tinha que mudar. O Regime cheirava a mofo, era fundamental recuperar o tempo perdido sem que os anéis e, muito menos, os dedos fossem perdidos. Então começou pelo mais fácil mudando os nomes da «União Nacional» para «Acção Nacional Popular e da PIDE para DGS. Se nos mastins apenas mexeu no nome, na ANP conseguiu introduzir um grupo reformador que na Assembleia Nacional ficou conhecido por «Ala Liberal» cuja missão foi a do debate dos temas que (também) Marcelo queria fazer aprovar, mas que acabavam chumbados ou desvirtuados pela maioria dos ultras. Entretanto, naquilo que não dependia da Assembleia, o Governo foi fazendo obra nova criando o «Banco de Fomento Nacional», o «Fundo de Fomento e Exportação», a «COSEC», o Porto e Complexo industrial de Sines, integração de rurais e de pescadores na segurança social (assim deixando de terem que trabalhar até à morte), constituição em ritmo acelerado de Caixas Profissionais de Previdência e “last but not least”, abriu o ensino superior à iniciativa privada.
O PIB crescia, crescia…, mas os «ultras» não terão reparado nisso e esticaram a corda…….
Com a sua típica e estonteante destreza verbal, Américo Tomás falou à Nação informando que os relatórios clínicos referiam a irreversibilidade da invalidez do Doutor Salazar. Com grande pesar, sentia-se na obrigação de o substituir no cargo de Presidente do Concelho de Ministros pelo que nomeara o Professor Doutor Marcelo José das Neves Alves Caetano a quem encarregara de formar Governo.
Cumpridas as formalidades constitucionais, Marcelo Caetano decidiu proferir o discurso inaugural do seu novo mandato com toda a pompa. No hemiciclo da (então) Assembleia Nacional, com transmissão em directo pela TV e rádios, espaço completamente cheio pelos próceres do Regime. E eram tantos nas imagens da RTP…! Mas não vi Régulos da Guiné nem Liurais de Timor. Discurso formidável, a fazer História, mas destinado a acalmar os que ali estavam e que se acotovelavam para aparecer nas imagens. O discurso da continuidade, com a diferença de passarem a ser governados por gente comum e não mais por um génio da Humanidade.
Peça notável, sem dúvida, de grande erudição e que, pontuada pelos «muito bem», típicos dos louvaminheiros de então, também deu esperanças aos evolucionistas. Começava a «Primavera Marcelista».
Após o discurso no Hemiciclo seguiu-se a cerimónia de cumprimentos no Salão Nobre onde Marcelo e seus Ministros se puseram a jeito para serem cumprimentados pela longuíssima fila de «regimistas». Chegada a vez do sucessor de «Jimmy» como mastim alfa, Marcelo terá dito algo como «O Senhor deve agora ir cumprimentar o Ministro do Interior que é o seu superior hierárquico». E com estas brevíssimas palavras perdeu a fidelidade cega e absoluta que os mastins prestavam ao fundador do Estado Novo, Salazar. Assim se escreve o futuro.
Foi durante a guerra civil espanhola que os italianos tiveram as mais amplas oportunidades para exibirem a sua prodigiosa inutilidade militar, a ponto de Franco se ter visto obrigado a inventar um pretexto qualquer para os devolver à origem sem que Mussolini se ofendesse.
Perante tal escândalo, Salazar ficou desconfiado do modelo político italiano e pediu a Marcelo Caetano que fosse presidir (?) à cerimónia de inauguração da Cátedra de Estudos Portugueses da Universidade de Roma e que, discretamente, tentasse averiguar da credibilidade do Regime de Mussolini. Corria o ano de 1938.
Como era de esperar, Marcelo saiu-se bem da missão que lhe fora confiada. Sobre a parte oficial da missão terá produzido documento que se encontra nalgum arquivo e sobre a parte não oficial terá, presumivelmente, feito relato verbal a Salazar e o que dessa conversa transpareceu foi apenas que Marcelo achou que o Regime de Mussolini era apenas uma comédia teatral (a Salazar não era necessário nem conveniente empregar a palavra mais apropriada, a de «Fantochada»).
Salazar decidiu despegar-se do modelo italiano não mexendo, contudo, no corporativismo e só mexendo em alguma coisa pra que tudo continuasse na mesma. Mas só depois de Espanha acalmar-se.
Esperou por 1940 para nomear Marcelo Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. O «S» na fivela do cinto das fardas deixava de significar «Salazar» para passar a significar «Servir», o exacerbamento do patriotismo passava a ser feito apenas pelos cânticos e pelo desfile no 1º de Dezembro enquanto a grande actividade passou a ser desportiva na ginástica, hipismo e vela; nas horas vagas, alguma Ordem Unida para induzir a disciplina e o «espírito de unidade» - mas isto era só para quem não estava inscrito num desporto.
Estava na hora de dizer aos remanescentes do Integralismo Lusitano que ou se integravam ou zarpavam e que o Direito Canónico era «coisa» da igreja e não do Estado Português. Pedro Teotónio Pereira integrou-se no Regime e serviu como Embaixador de Portugal em vários postos, nomeadamente em Madrid e em Washington, enquanto Francisco Rolão Preto optou pelo exílio só regressando depois do 25 de Abril de 1974.
Sem prejuízo da sua docência na Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa, Marcelo despolitizou o mais possível a Mocidade Portuguesa, mas em 1944 deu a missão por fastidiosa.
Dedicou-se plenamente à Universidade até Salazar o convidar para seu Delfim como Ministro da Presidência.
Das muitas iniciativas que tomou, duas ficaram para a memória: uma campanha de alfabetização de adultos e a criação da RTP.
Seguiu-se a Reitoria da Universidade e todas as convulsões das greves académicas que tanto incomodaram o Regime… até que a cadeira de Salazar se partiu.
Salazar caiu da cadeira, agonizou e morreu. Contudo o Estado de Direito sobreviveu-lhe; as «contas certas» sobreviveram-lhe; os nazis e os soviéticos ainda hoje não tomaram conta da Península Ibérica; o Império sobreviveu-lhe.
Deixem lá o Homem ter uma estátua em Santa Comba. Ou será que os servidores do imperialismo russo ainda hoje o temem?
NOTA FINAL:
Para conhecer os defeitos políticos de Salazar, ler os meus próximos textos sobre o Professor Marcelo Caetano.
Salazar tinha por virtuosa uma sociedade modesta, pia e, sobretudo, estática; o desenvolvimento intelectual ou material era perturbador da quietude que pretendia, apenas o imprescindível e, mesmo esse, desde que não perturbasse as contas públicas nem os saldos externos. O modelo valia para o todo nacional, Metrópole e Ultramar e, neste, para cada parcela. Na sua concepção, o Império solidificava a nossa Soberania como Nação independente, sobretudo perante a cobiça espanhola.
Avesso à concorrência que tinha por causadora do aviltamento dos preços que desse modo a todos os concorrentes levava á ruína, instituiu o Condicionamento Industrial.
Congruentemente, determinou que no Ultramar não se produzia azeite nem vinho e na Metrópole não se produzia algodão nem tabaco. Mais determinou as seguintes especializações territoriais:
Guiné - caju, sementes oleaginosas;
Cabo Verde – conservas de peixe;
São Tomé e Príncipe – Cacau;
Angola - café robusta, diamantes, minério de ferro, petróleo;
Moçambique – algodão, caju, minério de carvão, sisal;
Goa – Minério de ferro:
Timor-café arábica;
Macau – Entreposto comercial com a China.
Na perspectiva económica, modelo tendencialmente mercantilista, na financeira, quase hermético, com apenas uma porta para o exterior, a do «BdP», parecia sustentável «per secula seculorum» e isso incomodava os grandes do mundo. Contudo, Salazar tinha a certeza de que era um modelo por que valia a pena lutar.
“Jimmy” (nome de código no MI6), o mastim alfa, era 0 único português, não membro do Governo que ia semanalmente a despacho com Salazar. Assim se mantinha o contacto permanente entre o Doutor e os seus mentores, os ingleses a que depois se juntaram os demais Aliados.
Foi com o figurino soviético que, na guerra civil espanhola, o imperialismo russo chumbou na sua estratégia (ainda hoje válida) de domínio da Península Ibérica para o estrangulamento da Europa.
Espanha saiu do seu conflito humanamente exangue, materialmente arrasada e com relações externas muito condicionadas. Não podia entrar em nova guerra, precisava de tempo para lamber as feridas e, daí, a neutralidade que conseguiu na II guerra mundial.
Pró- aliados, Salazar conseguiu negociar a neutralidade portuguesa oferecendo aos beligerantes uma tranquila plataforma de espionagem mútua com expressão em Portugal e no Ultramar. Com grande eficácia, Salazar soube mexer-se com grande proveito para o resultado final do conflito.
Provada a total inutilidade militar italiana, o super germanófilo MNE espanhol Ramon Serrano Súñer (também conhecido por «jamon serrano»), pugnava pelo fim da neutralidade e pela adesão de Espanha ao Eixo. Preocupados, os Aliados pediram a Salazar que interviesse. E o Doutor definiu ao que iria: os Aliados forneceriam todos os bens de primeira necessidade que lá rareavam e Franco não emparelharia com o Reich. Os aliados concordaram e aceitaram a sugestão de as entregas se fazerem discretamente através da fronteira portuguesa.
No maior segredo, Salazar foi a Sevilha encontrar-se com Franco. Sabia que levava a solução para o problema que mais preocupava o Caudillo. Encantado, Franco aceitou tudo e, mais ainda, demitiu o seu MNE e Serrano Súñer nunca mais voltou ao governo durante os muitos anos que ainda duraria o consulado franquista.
Esta viagem a Sevilha foi a mais longa que Salazar empreendeu em toda a sua vida, mas valeu a pena. Até porque não é todos os dias que um português promove a demissão de um ministro espanhol. Mais ainda: Serrano Súñer elogiou Salazar ao longo de décadas e décadas dizendo que o Doutor era uma pessoa encantadora.
Contido o perigo nazi, era a hora de afastar os soviéticos. Disso se encarregaria «Jimmy». Até que o MI6 o mandou para Director da Interpol. Assim mesmo, discretamente como sempre, sem CAPSLK.
O actual slogan socialista das contas certas significa saldos positivos, mas quando há défices nada diz sobre o acerto das ditas. As contas só estarão erradas se tiver havido martelada.
Mas vou aceitar a modernice da linguagem e afirmar
que o acerto das contas era um «must» do Doutor Salazar.
Os problemas financeiros do Estado Português já vinham dos tempos da Monarquia e a Primeira República não os resolveu, antes os agravou. Foram disso causa certas despesas de desenvolvimento sem retorno imediato – v.g. a instituição da Universidade de Lisboa e da do Porto, as Escolas Normais de Lisboa e da de Coimbra... - mas sobretudo a participação na Grande Guerra de 1914-18 nas três frentes da Flandres, do sul de Angola (vizinho do Sudoeste Africano, então colónia Alemã) e no norte de Moçambique (vizinho do Tanganica, então colónia Alemã).
Passagem breve pelas Finanças do Governo do General Domingos de Oliveira onde considerou não estarem reunidas as condições para ser útil. Demitiu-se, regressou a Coimbra e esperou… Não tardou muito para que Carmona o convidasse a formar Governo. Aceitou porque sabia o que queria e para onde ia. Assumiu a Presidência do concelho de Ministros acumulando com a pasta das Finanças, decretou o fim das receitas consignadas e dos fundos privativos que pululavam pela Administração Pública. Todas as receitas públicas passavam a entrar exclusivamente no Tesouro e não havia mais dispersão de recursos. E se alguém reclamasse, logo se lhe atiçariam os mastins às canelas. E o Tesouro, grão a grão, logo começou a «botar figura» como se dizia lá pelas bandas de Santa Comba. Quanto às despesas, impôs uma apertada política de cabimentação em Orçamentos equilibrados: só se gastava o que coubesse na plausibilidade das receitas. O que encolhia ou esticava era a rúbrica do Investimento. As dívidas foram servidas e liquidadas (por exemplo a tristemente célebre dívida ferroviária cuja Câmara de Falência se situava em Paris). O desenvolvimento não prejudicaria o equilíbrio. Para Salazar, desenvolvimento podia significar também alguma instabilidade social perturbadora do seu ideal ruralista e das “virtudes” da economia de subsistência. Começava o entesouramento que engordaria o Tesouro nos 40 anos seguintes.
Isto, quanto à dívida pública, mas a privada tinha que ser tratada urgentemente e Salazar não hesitou. Não iria a votos, inspirou-se em Dracon.
Notável, a congruência das políticas orçamental, monetária e cambial, todas convergindo para o objectivo supremo da estabilidade.
Cada território ultramarino a seguir a mesma política (salvo o “lapso»” Alves dos Reis) e os respectivos bancos emissores tutelados pelo «Banco de Portugal», todo o espaço português se viu empurrado para uma prática mercantilista e com todos os saldos cambiais a serem contabilizados no «BdP». Se a tudo isto somarmos o acordo com a África do Sul relativo ao pagamento do trabalho dos «magaíças» nas minas daquele país, dá para compreender como grão a grão nasceu a «pesada herança do fascismo». Pesada, sim - só em oiro eram 800 toneladas; fascismo, não - era um Estado de Direito Corporativo.