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A bem da Nação

CURTINHAS XXI

Capitalizemos em imobiliário e ponhamos o mercado do arrendamento a funcionar e ficamos com o problema da Segurança Social resolvido

FEIRA DE ENGANOS (cont.)

v     Seja, então, a “capitalização” – melhor dizendo, o regime de contribuição definida. Nele, o beneficiário vai construindo uma carteira de aplicações financeiras (carteira de previdência) cujos rendimentos o sustentarão na velhice.

v     Desde logo, este regime assenta em regras (bem apertadas, aliás) que são deixadas quantas vezes na sombra: (a) o período de contribuição é claramente demarcado; (b) exigem-se contribuições mínimas obrigatórias, com determinada periodicidade ou segundo um dado calendário; (c) proíbe-se o levantamento de rendimentos durante o período de contribuição; (d) impede-se a mobilização antecipada do capital acumulado; (e) os rendimentos levantados em vida do beneficiário nunca poderão esgotar o capital acumulado (se tal acontecer, ele poderá não ter com que viver daí em diante); (f) frequentemente, o saldo que a carteira de previdência registar à morte do beneficiário é objecto de tributação específica.

v     É claro que algumas destas regras poderão ser atenuadas (no caso de o beneficiário se encontrar incapacitado ou desempregado, por exemplo). Mas, se assim for, o regime não será puro de contribuição definida e, sim, misto – com uma componente de seguro mais ou menos ampla que o aproxima do regime de benefício definido.

v     Como quaisquer outras, também as carteiras de previdência estão expostas a riscos. Só para citar os mais influentes: (a) risco de mercado (a possibilidade de se registarem perdas causadas por variações desfavoráveis dos preços); (b) risco de crédito (a possibilidade de haver perdas porque os devedores incumprem); (c) risco de contraparte (as possíveis perdas acontecem porque uma cláusula contratual ficou por cumprir); (d) enfim, riscos operacionais (com origem em causas naturais, falha humana, mau funcionamento de equipamentos, etc.).

v     Mas não só. O custo de gerir estas carteiras (muito provavelmente, uma gestão profissionalizada) também não pode ser ignorado. Há que compará-lo com o custo de intermediação associado ao regime de subsídio definido para concluir sobre a eficiência das alternativas em confronto.

v     Riscos operacionais à parte (aos quais, em boa verdade, nenhum regime de previdência consegue escapar), o regime de subsídio definido, quando respaldado em impostos, está livre de risco (como se compreende, este regime só é vulnerável à ruptura da tesouraria do Estado).

v     Quem defende à outrance o regime de contribuição definida aponta para o investimento em dívida soberana do país de residência do beneficiário como forma expedita de evitar o risco de crédito. Ficaria este risco, de facto, reduzido a uma expressão residual, mas não completamente eliminado – e o mesmo se passaria com o risco de contraparte. O risco de mercado, porém, não desapareceria.

v     Acresce que, para se ajustar à cadência com que os pensionistas pretendem receber as suas pensões, a dívida pública teria, ela própria, de satisfazer alguns requisitos técnicos – designadamente: (a) ser emitida em todos os prazos, curtos e longos; (b) oferecer, regularmente, emissões com prazo superior ao do período de contribuição; (c) distribuir o serviço da dívida por todos os meses do ano, para não ter de pagar cupões mensais; (d) ser emitida em stripping (isto é, autonomizando cada cupão de juros e, também, o cupão correspondente ao reembolso do capital); (e) renunciar a cláusulas de reembolso antecipado (calls); (f) enfim, o stock de dívida pública “viva” nunca poderia ser inferior ao total das responsabilidades pensionáveis.

v     Mas não é o facto de complicar a gestão da dívida pública, e de lhe fixar um patamar sem correlação com os objectivos “macro”, que faz desta solução expedita uma falsa solução. Na realidade, ela nem sequer chega a ser solução porque pagar pensões a partir dos rendimentos da dívida pública é, ainda, pagá-las com o produto dos impostos. Seria, afinal, uma nova versão do regime de previdência suportado por verbas transferidas do OGE, agora com benefício variável e sem custos de intermediação (inevitáveis no regime de benefício definido), substituídos estes pelas comissões de gestão das carteiras de previdência.

v     Esqueça-se, então, a dívida pública doméstica. Olhe-se para os valores mobiliários (acções, obrigações, etc.) emitidos por outras entidades residentes e para os depósitos bancários.

v     Estes últimos, além de exporem o regime de previdência às vicissitudes da política monetária, dificilmente proporcionariam, a longo prazo, acréscimos positivos do rendimento real (por efeito conjugado das estratégias que os Bancos adoptam para a gestão dos seus passivos e da tributação que recai sobre os rendimentos de capital). Dito de outro modo, muito provavelmente a soma do poder aquisitivo das contribuições entregues ao longo dos anos seria superior ao poder aquisitivo que as pensões recebidas consubstanciariam. Mais ainda: o capital económico dos Bancos passaria a ter de reflectir também, ainda que indirectamente, a estrutura demográfica da população – o que talvez não lhes desse muita saúde financeira (ou seja, o risco sistémico passaria a ter mais uma dimensão, a demográfica).

v     Valores mobiliários, então? Vejamos. Não consegui encontrar qual terá sido o acréscimo das responsabilidades pensionáveis (as pensões em pagamento estão, logicamente, fora de toda esta discussão) da Segurança Social em 2005. Suponho que andaria à volta dos € 3,000 milhões. Seriam assim € 3,000 milhões que, todos anos, as carteiras de previdência fariam afluir ao mercado de capitais.

v     E qual foi o volume de emissões no mercado primário de capitais, em Portugal, no ano de 2005, dívida pública à parte? Zero ou quase. Fica no ar a questão: nestas circunstâncias, como poderiam os beneficiários do regime de contribuição definida capitalizar para o seu futuro?

v     Ah! Dizem os tais. E o mercado secundário de capitais? Não conta para isto? Não, não conta. Um regime de previdência que só tem disponível o mercado secundário de capitais local vai dar seguramente origem a uma bolha especulativa que, a breve trecho, destruirá parte substancial do valor nas carteiras de previdência. Daí em diante, e por vários anos, só o vazio de oportunidades (o que não falta são exemplos disto, por esse mundo fora – e até cá em Portugal). E como sustentar a capitalização das contribuições, durante essa travessia do deserto?

v     Isto, para não falar da incerteza que envolve inevitavelmente o pagamento de dividendos, e da dupla tributação a que os dividendos estão sujeitos, características que não se coadunam com o pagamento regular de pensões.

v     E porque não investir no estrangeiro? Afinal é o que os países desenvolvidos fazem com reconhecido sucesso. Circunstancialmente, sim. Mas em tese, não - por duas razões: (a) para não exporem as carteiras de previdência a mais um risco, o risco cambial, as aplicações financeiras teriam de ser denominadas em euros, o que restringiria as oportunidades de investimento; (b) esta via só é ainda possível porque muitos dos mercados de destino destes investimentos são países que, ou têm em vigor regimes de previdência baseados na redistribuição (logo, ausentes do mercado de capitais local), ou não possuem qualquer regime de previdência, tout court.

v     Aliás, se atentarmos na nossa realidade local, veremos que os contribuintes portugueses e as empresas portuguesas há anos que têm vindo a pagar um pedaço – pequeno, certamente, mas um pedaço – das pensões que os residentes noutros países recebem. E, mais recentemente, o inverso também deve ser verdade – mas não é esta a questão de fundo.

v     A questão de fundo é que, por força da evolução demográfica nas sociedades modernas, as responsabilidades pensionáveis estão a crescer, ano após ano, mais rapidamente que o volume de novas emissões no mercado internacional de capitais (dívida pública incluída). E a conclusão impõe-se: o mercado de capitais terá, certamente, um papel a desempenhar no financiamento das pensões, mas está muito longe de ser “a” solução que os defensores da capitalização defendem.

v     E entre nós? Entre nós o mercado de arrendamento (e, em condições não tão gerais, o mercado imobiliário, na sua globalidade) poderia ser a “reserva de oportunidades de investimento” que permitisse a capitalização de contribuições definidas. Afinal, o arrendamento tem sido, ao longo dos séculos, o instrumento mais eficaz na transferência inter-geracional do rendimento. Só que a inanidade do nosso legislador, a miopia da nossa Autoridade Monetária e o oportunismo dos nossos Bancos reduziram a escombros esta saída airosa para o beco em que se encontra a Segurança Social. RIP.

Lisboa, Setembro de 2006

 

A. PALHINHA MACHADO

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