ICONOCLASTAS À SOLTA
Budas de Bamyian, antes e depois da iconoclasia dos talibans
A Reforma protestante do século XVI foi puritana em muitos aspectos. Propunha atitudes fundamentalistas que tinham estado presentes em anteriores movimentos de protesto, como os lolardos, os hussitas e, recuando ainda mais, os cátaros e outros, contra as extravagâncias da Igreja católica, manifestas num estilo de vida faustoso (especialmente entre os «príncipes» da Igreja), em atitudes dissolutas (dos sacerdotes celibatários e dos monges), no vestuário (com trajes eclesiásticos elaborados) e tamabém na arte (como no caso dos Médicis de Florença ou do cardeal Borromeo de Milão).
Estes movimentos pretendiam um regresso à «Palavra de Deus», à Bíblia, a que todos deveriam ter acesso (um aspecto importante da história da educação e da edição) e à simplicidade da Igreja primitiva que incluía a rejeição da riqueza (é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um homem rico entrar no reino dos céus).
Estas práticas da Igreja primitiva incluíam também, para muitos, uma rejeição da representação, principalmente no teatro, cujas formas romana e grega deixaram de existir, se bem que, num certo sentido, fosse substituído por representações rituais; incluíam ainda a rejeição parcial da representação figurativa, designadamente a de três dimensões (a escultura), mas também da pintura, sobretudo nos contextos eclesiásticos, mas também nos seculares. O teatro e a escultura foram duas das grandes realizações artísticas dos gregos, realizações que hoje entendemos como uma parte intrínseca da nossa herança ocidental; contudo, essas formas de arte desapareceram sob o domínio do Cristianismo, sendo por ele deliberadamente destruídas por questões ideológicas, além de terem sido rejeitadas pelo Judaísmo e, posteriormente, pelo Islão.
O puritanismo sob a forma de iconoclasia tendeu a marcar o início das religiões mundiais que podem, em certos casos, permitir, numa fase posterior, as imagens figurativas. E nas reformas e revoluções verifica-se a mesma tendência para regressar aos aspectos fundamentais, por vezes considerada uma reforma de extremismos. Esta devoção à palavra em detrimento da imagem na história inicial das religiões mundiais reflecte provavelmente o facto de serem baseadas em textos escritos e é a palavra que as distingue de cultos anteriores baseados em imagens, agora vistos como associados à veneração de ídolos.
Jack Goody
Universidade de Cambridge, St. John’s College
In “Os Taliban, Bamiyan e Nós: o Outro islâmico”, «ANÁLISE SOCIAL», vol. XXXIX, Inverno de 2005, pág. 769 e seg.