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A bem da Nação

PRATOS LIMPOS – II

 

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 AS RECAÍDAS DO SNS

 

Um dos factos mais intrigantes - e que melhor caracteriza a ineficiência da gestão dos fornecedores (e das tesourarias) no âmbito do SNS - é a regularidade (diria mesmo, a fatalidade) com que as estimativas da dívida vencida que servem de base às grandes operações de saneamento financeiro são, de imediato, ultrapassadas (amplamente ultrapassadas, até) no exacto momento em que tais operações são decididas. Como se o anúncio da decisão desencadeasse, de modo absolutamente inesperado, um surto de morbidade a reclamar cuidados hospitalares urgentes, extensos e anormalmente custosos.

 

Tem sido assim, já lá vão 30 anos. Os fornecedores a refilarem, os administradores hospitalares a queixarem-se, quando as dívidas acumuladas dos hospitais ultrapassam a fasquia dos € 500 milhões (100 milhões de contos, em tempos idos) – e o Governo a fazer-se desentendido. Os dias passam, a dívida inevitavelmente cresce, fornecedores e administradores tornam-se mais vocais, começam a falar das suas desgraças em público – e o Governo a jurar que são exageros, pois está tudo sob controlo. E, entretanto, a barreira dos € 1.0 mil milhões (200 milhões de contos, de antigamente) a aproximar-se… Até que, uma vez transposta tal barreira, quando a ruptura das tesourarias hospitalares está logo ali, ao virar da esquina, vem o Governo anunciar, ufano, que, com enorme sacrifício próprio, lá encontrou € 1.2 mil milhões para pôr a casa finalmente (e, nas entrelinhas, dá a entender que definitivamente) em ordem. Azar: as dívidas reclamadas já excedem largamente aquele montante (€ 1.5 mil milhões talvez não cheguem). Duplo azar: quando a verba se esgota, ficam sempre fornecedores a lamentarem-se que nada receberam. Como é isto possível?

 

A explicação é bem banal – e nada tem a ver com epidemias súbitas. Em todas as operações de saneamento que têm sido levadas a efeito desde os anos ’90 concorrem, sem excepção, duas circunstâncias:

 

  • Como os fornecimentos ao SNS são passíveis de IVA, e como o Estado que fica a dever a quem lhe fornece é o mesmo Estado que exige o pontual pagamento do IVA liquidado – a solução em que convêm hospitais e seus fornecedores (para que, uns continuem a dispôr dos medicamentos, fármacos e materiais de que necessitam, e os outros não fiquem expostos a insustentáveis pressões de tesouraria) é simples (e óbvia): fornecer sem facturar, para não haver lugar a liquidação do IVA e a eventual incumprimento fiscal. As facturas retidas, essas, surgirão à luz do dia logo que haja a certeza de que vão ser pagas daí a pouco.

 

 

  • Como alguns fornecimentos são essenciais à normal actividade hospitalar, fornecedores com maior poder negocial conseguem impôr, naqueles períodos em que se verifica algum desafogo financeiro, e à custa dos demais, a facturação antecipada, umas vezes paga no acto, outras garantida pela cativação de parte da verba a tanto custo orçamentada. Por isso, todas estas operações de saneamento financeiro têm sempre o mesmo epílogo: dívidas há muito vencidas que ficam por pagar.

 

 

Compreende-se que, ciente deste historial, o Ministro das Finanças queira pôr tudo em pratos limpos antes de libertar os € 500 milhões que destinou para pagamento de dívidas do SNS. Mas não é com auditorias que evita a repetição destes episódios - não é assim que evitará futuras recaídas.

 

O que tudo isto ilustra bem é que:

  • O SNS desconhece, em cada momento, qual o montante total das suas efectivas responsabilidades perante os fornecedores, o que o torna dificilmente governável, no plano financeiro;
  • O SNS ignora os prazos de pagamento habitualmente praticados por cada fornecedor, tal como ignora as razões que estão subjacentes a quaisquer disparidades de tratamento, por aqui e por ali;
  • Reside no própro SNS a causa da selecção adversa de fornecedores, e da consequente cartelização “de facto”, em benefício daqueles que disponham de maior capacidade financeira e em prejuízo do equilíbrio financeiro do sistema;
  • O SNS não dispõe, para efeitos de orçamentação e controlo, de um indicador coincidente (porque em tempo real) da actividade desenvolvida por cada estabelecimento hospitalar – precisamente, a evolução temporal das aquisições;
  • Nestas condições, a regular prestação de contas será sempre um exercício levado a efeito com bastante atraso relativamente aos actos de gestão que estejam a ser apreciados.Pague-se, então, o que for possível - que daqui a 2-3 anos teremos voltado ao mesmo.

 

Março de 2018

 

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António Palhinha MACHADO

JUROS NEGATIVOS

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Caro Dr. Palhinha Machado:

Se, por exemplo na Bolsa de Kuala Lumpur (finjamos, para teorização), os juros são negativos, que interesse tenho eu em «investir»? Não valerá mais guardar as poupanças no colchão onde os juros são não negativos?

Abraço,Dubrovnik-réveillon 2016-17 (2).jpg

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 Henrique Salles da Fonseca

 

 

PRATOS LIMPOS – I

 

O MISTÉRIO DOS JUROS NEGATIVOS

 

Por estes dias muito se tem falado de “juros negativos”. Estranho. Então o mutuante (o credor) ainda vai ter que pagar para emprestar dinheiro (um mútuo de capitais)?

 

Quando se fala de “juros negativos”, fala-se de quê, afinal?

 

Fala-se da taxa de retorno para o capital mutuado (emprestado) pelo credor – o que é dizer, a posição de crédito que ele detém em carteira?

 

Ou fala-se da taxa nominal do cupão de juros - que o devedor se obrigou a pagar pontualmente e que é parte do serviço dessa dívida?

 

Desde logo, há-que distinguir entre uma e outra. A taxa nominal do cupão de juros é um dos vários parámetros que são necessários para determinar o montante de juros que o devedor/mutuário (o emitente de dívida) terá de pagar. A taxa de retorno, por sua vez, mede a rentabilidade que a posição de crédito proporcionará ao credor/investidor. Uma, serve para calcular os juros; a outra sustenta decisões financeiras (seja emprestar, seja pedir emprestado).

 

E há que distinguir também entre mercado primário (aquele onde a dívida é emitida e colocada) e mercado secundário (aquel'outro onde os investidores, entre eles, vão comprando e vendendo títulos de dívida).

 

No mercado primário, a taxa nominal do cupão de juros e as comissões pagas pelo emitente vão formar um custo de capital (para o devedor). À taxa nominal do cupão de juros e às comissões suportadas, agora pelo subscritor/investidor, vai corresponder uma taxa de retorno que só terá significado se ele mantiver em carteira, até ao respectivo vencimento, o título de dívida que subscreveu.

 

No mercado secundário entra em cena um novo parâmetro: a cotação do título de dívida no mercado, a qual vai variando, quer de sessão para sessão, quer no decorrer de cada sessão. No mercado secundário pode acontecer que a cotação se situe de tal modo acima do par (isto é, seja maior que o montante do cupão de reembolso deduzidos os encargos certos que o credor/investidor terá de suportar no acto de reembolso) que a taxa de retorno (então denominada  tradicionalmente yield) seja negativa. Não é algo excepcional, longe disso. Como se tem visto com os Bunds (Dívida Pública Titulada alemã), e não só, os investidores, por vezes, estão dispostos a pagar para deter:

(i) dívida de entidades que oferecem um risco de crédito desprezável;

(ii) dívida cujo mercado secundário é perfeitamente líquido;

(iii) dívida que é instrumental para o acesso às facilidades de liquidez deste ou daquele Banco Central;

(iv) enfim, dívida que é geralmente aceite como colateral em mercados financeiros especializados (como é o caso das Treasuries dos EUA, das Bunds e de uns quantos títulos de dívida soberana mais).

 

Taxas nominais de cupão de juros negativas, essas sim, são, à primeira vista, raríssimas - mas, nestes últimos tempos, têm ocorrido com alguma frequência em emissões do tipo “Obrigações sem Cupão (de juros)” (como os Bilhetes do Tesouro, por exemplo, que só têm cupão de reembolso) – fruto das políticas monetárias de Quantitative Easing. Agora, são muitas as razões que podem colocar um título de dívida, no mercado secundário, acima do par a tal ponto que a yield é negativa (como é evidente, à medida que o prazo remanescente para a respectiva Data de Reembolso vai encurtando, assim a cotação no mercado secundário se vai aproximando do cupão do reembolso, podendo mesmo ficar abaixo do par se houver dúvidas sobre a capacidade financeira do respectivo devedor).

 

Mas o mercado financeiro da dívida tem mais que se lhe diga. Na verdade há dois mercados de dívida:

(i) o da Dívida Soberana;

(ii) o da Dívida (dita) Corporativa. Há até mais compartimentos no mercado da dívida, mas não vêm agora ao caso.

 

O mercado secundário da Dívida Soberana (refiro-me, obviamente, à Dívida Soberana investment grade) tem um ciclo de liquidez bem desenhado:

(i) fase "on-te-run" (apreciável liquidez);

(ii) fase "off-the-run" (liquidez mais fraca, logo, custos de transacção mais elevados);

(iii) fase "off-off-the-run" (liquidez escassa e, por consequência, custos de transacção muito significativos). Nada de semelhante ocorre no mercado secundário da Dívida Corporativa – e o grosso de dívida das empresas, por não ser livremente transmissível, nem sequer dispõe de mercado secundário.

 

O que entender, então, por "juros negativos"?

 

A expressão "juros negativos" confunde. Se usada para caracterizar o mercado primário, traduz uma situação em que o credor/investidor paga ao emitente/devedor, no cômputo global da emissão de dívida:

(i) ou porque, se trata de uma “Obrigação sem Cupão” em que o preço de colocação é superior ao cupão de reembolso:

(ii) ou porque se trata de uma emissão de dívida com taxa nominal do cupão de juros negativa. No contexto do mercado secundário, significa, de facto, yield negativa porque a cotação do título está muito acima do par – e nada tem a ver, seja com a taxa nominal do cupão de juros, seja com o esforço financeiro que recai sobre o emitente/devedor (o custo de capital).

 

Yields negativas são estados possíveis do mercado secundário, mas só têm um módico de racionalidade nas circunstâncias que mencionei mais acima:

(i) risco de crédito praticamente nulo;

(ii) mercado secundário perfeitamente líquido;

(iii) elegibilidade para aceder às facilidades de liquidez de um Banco Central;

(iv) aceitabilidade como colateral em mercados financeiros de primeira grandeza. Se as política monetárias tipo Greenspan Put (como o Quantitative Easing) podem acrescentar uma circunstância mais à racionalidade das yields negativas? Podem - por períodos muito curtos. Mas, então, o fumo de irracionalidade envolve a Autoridade Monetária (como se viu ao longo da primeira década deste século).

 

Pode uma Bolsa de Valores estar a negociar títulos de dívida com yields negativas? Pode, pelo que ficou visto. Desde que não seja a Bursa Malaysia Berhad, por duas razões:

(i) porque nenhuma Instituição Financeira internacionalmente relevante depende das facilidades de liquidez do Negara Bank of Malaysia;

(ii) porque "juros" são "riba" e “riba” é "haram" na finança islâmica onde o Negara Bank of Malaysia tem um papel preponderante.

 

Em resumo: Yields negativas justificam-se quando preocupações de segurança jurídica, ausência de risco de crédito e de liquidez se sobrepõem, na mente dos investidores, ao desejo de rentabilidade. Ou, então, nos depósitos bancários, quando as comissões cobradas ao depositante são superiores, no ciclo anual, aos juros líquidos que o Banco lhe paga. Mas estes são outros contos.

 

Abraço

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António Palhinha Machado

CATURRICES XLVI

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A BANCA PORTUGUESA NO QUADRO DO ACORDO BASILEIA-2

 

(…) Vem isto a propósito da Banca portuguesa - e dos efeitos que nela, previsívelmente, terá este novo quadro de relações interbancárias que o processo negocial em Basileia começou a desenhar.

 

Portugal integra, desde 1999, uma união monetária onde o seu sistema financeiro pouco pesa - e não são muitos os Bancos de raíz portuguesa com dimensão suficiente para acederem directamente às operações de "open market" que o Banco Central Europeu leva a efeito. Por isso, as linhas interbancárias concedidas por Bancos estrangeiros têm vindo a ganhar uma importância cada vez maior no “funding” dos Bancos portugueses.

 

Sendo o mercado de capitais português, como é, incipiente, não surpreende que as carteiras dos Bancos sejam constituídas, maioritáriamente, por aplicações financeiras sem natureza mobiliária, cujos devedores não têm visibilidade nos mercadores financeiros. Em quase todos os sectores da economia portuguesa, as empresas não dispõem de outras fontes de financiamento que não sejam o crédito bancário e o crédito dos fornecedores - este, em grande parte, financiado também pela Banca. Por força disto, o sistema bancário português retém, quase por inteiro, e em muito maior proporção do que se verifica em economias financeiramente mais evoluídas, os riscos inerentes ao ciclo económico - riscos estes que são não-seguráveis, pouco diversificáveis e insusceptíveis de cobertura. Acresce que a qualidade das demonstrações financeiras divulgadas pelas empresas portuguesas, e que vão instruir as decisões quanto ao crédito bancário, é, regra geral, fraca - e raras serão aquelas que passariam no crivo dos Princípios Contabilísticos Geralmente Aceites pelo IASC (International Accounting Standards Committee). Em resumo, a parcela maior das carteiras dos Bancos portugueses: (i) é constituída por instrumentos financeiros cujo risco de crédito não se encontra ainda estatísticamente medido; (ii) tem por contraparte entidades com reduzida expressão financeira, que não foram, nem virão a ser jamais, objecto de notação por agências de “rating” independentes; (iii) está alicerçada em informações financeiras cuja qualidade é difícil de comprovar; e (iv) concentra uma fracção desproporcionadamente grande dos riscos decorrentes da actividade económica. Neste contexto, não vai ser tarefa fácil, para os Bancos portugueses, demonstrar que possuem um capital adequado - que dispõem do capital que baste para atender às perdas prováveis a que o risco implícito nas suas carteiras os expõe.

 

Com a adesão à UME (União Monetária Europeia), o encargo de financiar o saldo da Balança de Transacções Correntes passou do Banco Central para os Bancos. Ora, como os deficites das transacções correntes têm vindo a situar-se, ano após ano, em níveis preocupantes, o endividamento líquido dos Bancos portugueses junto do exterior não podia deixar de crescer - e é já enorme, qualquer que seja o termo de comparação que se utilize: PIB, Activo Líquido Total do sistema bancário (com exclusão do Banco Central), etc. Forçoso é concluir, portanto, que esta dependência do sistema bancário português, face aos mercados financeiros internacionais, designadamente o mercado interbancário secundário da zona-euro, tenderá a aumentar. A ritmo mais lento, dado que a sua evolução no passado recente parece ser insustentável - mas a aumentar. O que é dizer que a Dívida Bancária ao exterior, medida no PIB, não deverá baixar nos próximos anos, muito pelo contrário - ainda que a economia portuguesa entre em recessão. Consequentemente, o sistema bancário português, no futuro previsível, será, não menos, mas ainda mais vulnerável aos critérios de decisão, e às idiossincrasias, da Banca estrangeira - e, em especial, daqueles Bancos que, pela sua projecção nos mercados financeiros internacionais, terão toda a vantagem em passar a determinar o capital em risco através do método IRB avançado.

 

Parece prudente admitir, portanto, que os Bancos estrangeiros, afinal os verdadeiros financiadores de uma fracção importante da economia portuguesa, irão avaliar com crescente cuidado o risco de liquidez a que as suas linhas interbancárias os expõem - tornando, assim, o 3º pilar do Acordo Basileia 2 (a disciplina de mercado) numa realidade onde os Bancos portugueses terão de aprender a viver. Para tal, é de esperar que os grandes Bancos estrangeiros, muito proximamente, venham a recorrer a modelos IRB avançados, mesmo que esses modelos não tenham sido ainda reconhecidos pelas respectivas autoridades de supervisão. E, tal como aconteceu com os princípios que inspiraram o Acordo de 1988, é razoável esperar que este paradigma da "medição sistemática do risco de crédito e das perdas prováveis, através de modelos estatísticamente aferíveis" venha a ser progressivamente adoptado pela generalidade dos Bancos, como prova provada - perante as suas autoridades de supervisão, seguramente; mas, acima de tudo, perante os seus pares e perante os mercados financeiros - de prudente e sã gestão. A prevalência deste paradigma como prova da qualidade da gestão, parece, pois, inevitável, ainda que o Acordo Basileia-2 nunca venha a ter lugar - e vem estabelecer, sem dúvida, um ponto de viragem na própria concepção da actividade bancária e, em particular, do relacionamento interbancário.

 

A disciplina do mercado (3º pilar) não permitirá que os Bancos portugueses se coloquem à margem das mudanças que estão já em curso. Mais do que a legítima preocupação de projectarem a imagem de uma gestão prudente e de enfrentarem com êxito o escrutínio dos pares, é a incontornável dependência das linhas interbancárias com origem no estrangeiro que irá impor-lhes, se é que não impõe já, a necessidade de demonstrarem permanentemente a qualidade das suas carteiras de crédito e dos processos que seguem na avaliação, na detecção e na gestão do risco (riscos financeiros e riscos operacionais). Como fazer, então, quando as carteiras de crédito bancário estão formadas, em grande maioría, por contrapartes sem "rating" independente, por instrumentos financeiros cujo risco nunca foi estatísticamente medido e por informações financeiras opacas? Ou os Bancos portugueses são capazes de demonstrar à evidência a qualidade das suas carteiras - ou serão os Bancos estrangeiros financiadores a estimarem o capital que cada um tem em risco, e a decidirem em conformidade.

 

Uma outra tendência que as negociações em curso têm feito germinar, é aquela que reflecte a mudança nas atitudes dos mutuantes de último recurso. Com uma contribuição pouco menos que marginal para o risco sistémico na zona-euro, o sistema bancário português, paradoxalmente, pode ser visto pelos mercados financeiros como representando um risco de liquidez acrescido. E a razão é simples: até onde estaria o SEBC (Sistema Europeu de Bancos Centrais) na disposição de se envolver para, como mutuante de último recurso, resgatar um Banco português em crise de liquidez?

 

Neste novo contexto, se não conseguirem oferecer a transparência que os mercados financeiros internacionais lhes exijam, se não conseguirem demonstrar a qualidade das suas carteiras e se não exibirem resiliência bastante para que as dúvidas a propósito da actuação do SEBC sejam meramente retóricas, os Bancos portugueses deverão estar preparados para suportarem prémios de risco cada vez maiores no custo efectivo do seu "funding" - e as consequências nefastas da selecção adversa a que ficarão remetidos.

 

A disciplina de mercado (3º pilar), na conjuntura económica actual, é, de certeza, incómoda para os Bancos portugueses. Mais do que a dimensão dos seus capitais próprios, a partir de agora, com a disciplina de mercado (3º pilar), o que importará para um Banco é a relação (também designada por "adequação do capital") entre esses capitais próprios e o capital em risco apurado segundo um método reconhecido, consistente e credível - e, em última análise, a qualidade dos seus diferentes Livros. Mas, como demonstrar cabalmente a qualidade de uma carteira de crédito bancário, quando não existem estatísticas de base nacional e sectorial sobre: (i) taxas de incumprimento; (ii) perdas incorridas; (iii) taxas de recuperação de capitais em processo de liquidação; (iv) degradação da solvência; ou (v) evolução do risco de crédito ao longo do ciclo económico? Como fazê-lo, quando é fácil comprovar que não está ao alcance de nenhum Banco, isoladamente, construir as estatísticas de que necessita - por muito grande que seja a dimensão da sua carteira?

 

Eis um grande desafio que a Banca portuguesa, no seu conjunto, e cada Banco, individualmente, têm de saber superar para bem da competitividade da economia portuguesa.

 

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A. Palhinha Machado

 

Publicado em Economia Pura-IV-nº 45 (abril 2002)

CURTINHAS Nº CLI

 

Tempo de balanços…e de pedir contas

 

 

 O que nos mostra o caso BES/NB:Falência.jpg

  • Que o Supervisor (BdP) não fazia a menor ideia dos activos que compunham o Balanço do BES, muito menos dos riscos que tais activos envolviam e das perdas que poderiam causar.
  • Que o BdP, numa leitura naif da teoria, olhava unicamente para as Demonstrações Financeiras Consolidadas do Grupo BES, esquecendo-se de ver a informação financeira do BES individual (tantos outros Supervisores, por esse mundo fora, cairam em igual lôgro).
  • Que a causa da crise do BES não era só a exposição ao Grupo Espírito Santo e ao BESA, entretanto arrumada no BES “mau” (e pessimamente solucionada no caso do BESA). Basta ver que os capitais já injectados no NB ultrapassam largamente a exposição directa líquida do BES ao Grupo Espírito Santo, à data da “resolução”.
  • Que a crise no BES e no Grupo BES, por muito mal que fossem geridos, não seria certamente caso único entre nós – pelo que forçoso é concluir que a Banca portuguesa estaria há muito (talvez desde meados dos anos ’90) sem supervisão capaz.
  • Que terá havido algo mais do que aquilo que veio a lume para o BCE vedar, de sopetão e em definitivo, o acesso do BES às facilidades de liquidez usuais, asfixiando-o (e eu não sou nada adepto de “teorias de conspiração”).
  • Que o BdP ignorava (e ignora) como se valoriza um Banco na óptica dos investidores profissionais – daí ir de surpresa em surpresa nas sucessivas tentativas para vender o NB.
  • Que o que se está verdadeiramente a tentar “vender” é o passivo do NB, entregando para encontro de contas activos considerados seguramente realizáveis e informações preciosas sobre o mercado português (valham estas o que valerem) – não sendo óbvio que uma coisa dê para a outra.
  • Que as características estruturais da economia portuguesa (desde logo: o regime jurídico das insolvências; a não neutralidade fiscal do IRC, que premeia o endividamento; a prevalência dos contratos sem termo fixado como norma geral das relações laborais; a ausência de um mercado de valores mobiliários com um mínimo de eficiência e de liquidez) não facilitam a recuperação de um Banco em crise profunda – sendo mesmo muito duvidoso que num contexto assim tal seja objectivamente possível (à atenção da CGD).
  • Que a metodologia de “resolução” de Bancos insolventes concebida pela UE, sob a capa caridosa de poupar os contribuintes a mais sacrifícios, é coisa que só faz sentido nos corredores de Bruxelas.
  • Que a questão de fundo não é escolher entre “vender” (em vernáculo: “passar o diabrete”) e “estatizar” - para não “liquidar”. É, sim: (i) identificar as linhas de negócio e as parcelas do património do NB capazes de sustentar a construção de um Banco sólido, eficiente e rentável; (ii) encontrar quem dê garantias profissionais de o conseguir fazer; (iii) liquidar competentemente o restante património (activos e passivos), perdendo quem tiver de perder.
  • Que o argumento segundo o qual a simples hipótese de liquidar parte de um Banco em crise (e o NB nasceu já em crise, como se tornou óbvio) com perdas para accionistas e credores (mas não os depositantes) lançaria o caos nos restantes Bancos portugueses é duplamente falacioso: (i) por um lado, mantém – e manterá ad aeternum – os contribuintes portugueses como garantes dos Bancos, façam estes o que fizerem; (ii) por outro, mantém – e manterá indefinidamente – os restantes Bancos reféns do que vier a acontecer ao NB.
  • Que nada impede – porque não faz sentido proíbir – que um eventual comprador do NB proceda a esta limpeza (são muitas as maneiras de o fazer), com o à vontade de quem já descontou essas perdas, folgadamente, no preço que ofereceu.
  • Que tudo isto deveria ter sido visto e revisto aquando da intervenção no Grupo BES (03/08/2014). Fazê-lo só agora no NB, in extremis, é outro erro de palmatória do BdP que está a fragilizar ainda mais a Banca portuguesa.

 

O que nos mostra o mercado de retalho dos combustíveis líquidos:

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  • Que, a montante, no abastecimento por grosso, está um fornecedor dominante, praticamente único, e uma armazenagem complexa também nas mãos de uma só entidade.
  • Que o fornecedor dominante no abastecimento por grosso é simultaneamente produtor/refinador e detentor da marca líder no mercado do retalho.
  • Que uma tal infra-estrutura, para mais reforçada pela rigidez da procura no consumidor final, tem tudo para favorecer a cartelização da oferta no retalho – com a marca líder a praticar os preços de venda que melhor lhe convêm e todas as restantes marcas a operarem em torno desses preços (diz-se destas últimas que são “seguidoras” ou “tomadoras de preços”).
  • Que num ambiente assim, a concorrência resume-se praticamente à localização geográfica dos postos de abastecimento e a espalhafatosas, mas pouco substantivas, campanhas de marketing.
  • Que o facto de o acompanhamento das condições de comercialização no mercado de retalho ser feito através de um índice que inclui seguro e frete (CIF Rotterdam), quando praticamente todos os combustíveis líquidos consumidos em Portugal são aqui produzidos, confere ao tal fornecedor dominante uma renda garantida igual à diferença entre fretes e seguros no envio por mar até Rotterdam e os seguros e fretes nas movimentações em território português – o que mais reforça a tendência para a cartelização.
  • Que, num cenário assim, para que os consumidores não fiquem inteiramente nas mãos da oferta, só há duas soluções: (i) uma, burocrática, a contratualização dos preços (que é mais ou menos o que se passa, de facto, em Portugal); (ii) outra, não-burocrática, baseada na transparência dos preços de mercado. É esta última que interessa.
  • A transparência exige uma entidade organizadora do mercado de retalho que comece por recolher do fornecedor dominante – e divulgar e verificar - os preços que este irá praticar para as entregas na semana seguinte com pagamento a pronto (vendas spot).
  • Seguidamente, cada marca comunica à entidade organizadora, sob reserva de confidencialidade, os preços que irá praticar na respectiva rede de retalho durante a semana seguinte.
  • Por fim, a entidade organizadora publica no seu site esses preços em dia e hora previamente fixados – e só depois desta publicação as marcas ficam autorizadas a tornar públicos e a praticar os preços que comunicaram.
  • Deste modo, semana após semana: (i) não haverá discriminação de preços spot no abastecimento por grosso; (ii) as marcas formam os seus preços de retalho de modo mutuamente independente, mas a partir de uma informação comum; (iii) qualquer padrão sistemático entre marcas nos preços de retalho, ou se crê que sejam coincidências, frutos do acaso cada vez mais improváveis, ou revelarão conluio, cartelização; (iv) será mais fácil supervisionar os preços efectivamente praticados no mercado de retalho; (v) enfim, a Autoridade da Concorrência dará por melhor empregue o seu tempo.

 

O que nos mostram as mais recentes estatísticas sobre o desemprego:

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  • Que, para já, estamos perante um enigma: (i) ou a actividade económica foi mais intensa do que o estimado; (ii) ou o modo de calcular a taxa de desemprego foi modificado, fazendo-a cair na secretaria; (iii) ou algo mudou no contexto do ambiente laboral, no ano findo.
  • Enquanto não for revista a estimativa do PIB em 2016 e não forem prestados esclarecimentos adicionais sobre o cálculo da taxa de desemprego, só nos resta a mudança no ambiente laboral como explicação plausível - mas não necessariamente a única.
  • A alteração mais visível que ocorreu no ambiente laboral foi, sem sombra de dúvida, a ausência praticamente total de greves no Sector Público e no sector dos transportes sob gestão pública.
  • Será que a conflitualidade laboral, quantas vezes instigada por razões puramente políticas, contribui, não para a defesa do emprego (dos postos de trabalho, como reza a consigna), mas para agravar o desemprego e dificultar a criação de novos empregos?

Janeiro de 2017 

Palhinha Machado.jpgA. Palhinha Machado

TRETAS # 19

 

QUO VADIS, TEORIA?

 

  • As teorias económicas (as boas, que das más nem vale a pena falar) são ferramentas preciosas – e perigosas. As que reflectem sobre o comércio transfronteiriço – e, com mais generalidade, as que abordam as relações económicas internacionais – são disso bom exemplo.

 

  • O caso que nos toca mais de perto é, talvez, o do Tratado de Methuen (1703), pelo qual, nem os vinhos portugueses poderiam ser objecto de discriminação fiscal no mercado inglês, nem os tecidos ingleses poderiam ser fiscalmente prejudicados no mercado português.

 

  • Por esse tempo, o vinho era um dos produtos mais apreciados no comércio intra-europeu - e os vinhos franceses os mais valorizados. Graças ao Tratado, os vinhos portugueses passavam a concorrer no apetecível mercado inglês em condições excepcionalmente favoráveis – únicas, mesmo.

 

  • O que, de início, foi visto como um golpe de génio da diplomacia económica portuguesa veio a revelar-se uma vitória pírrica. A dinâmica económica que começava a esboçar-se iria abandonar a agricultura (que nos calhou em sorte) e apostaria tudo na indústria manufactureira (dada de bandeja a Inglaterra). Uma dinâmica que, após a Conferência de Berlim (1884-5), desencadeou a corrida aos impérios coloniais e teve por epílogo duas guerras mundiais (1914-18 e 1939-45).

 

  • Adam Smith (n. 1723) e David Ricardo (n. 1772) terão sido os primeiros de uma longa plêiade de ilustres pensadores (entre os quais o nosso tão esquecido Frederico de La Figanière, n. 1827) a reflectir sobre os efeitos do comércio internacional no desenvolvimento económico, no bem-estar das populações – e, acima de tudo, na promoção da paz.

 

  • Reflexões que não tardaram a ser contaminadas pelo veneno ideológico que, desde o final do séc. XIX, tem infectado a dismal science – a saber: o “postulado da optimalidade”. Trocado por miúdos: o modelo de mercado (com maior rigor, a economia de base contratual), mais que gerar benefícios visíveis, é visto como o óptimo absoluto – o nec plus ultra. Dali, por definição, nenhum mal poderá advir. Só o bem, a prosperidade e a harmonia – e é dever primeiro da teoria revelar isso mesmo.

 

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  • O modelo de Mundell (n. 1932) e Fleming (n. 1911) veio navegar nestas águas teóricas: a economia de mercado, argumenta, pode evoluir para zonas monetárias onde todos os que nela participem sairão de certeza (teoria dixit) a ganhar – por isso, “óptimas”. Com um pequeno senão (conhecido como o “trilema de Mundell”): não é possível prosseguir uma política monetária independente se as taxas de câmbio estiverem fixadas e os movimentos transfronteiriços de capitais, liberalizados.

 

  • Este senão deveria abalar a fé dos teóricos na “optimalidade” do modelo de mercado (no sentido que acima referi). Mas não. Apesar de Mundell-Fleming, ao pressupor a plena mobilidade das populações no interior do território convertido em zona monetária “óptima”, não ter como garantir a ocupação racional desse território (o que é politicamente desconfortável); e apesar de a “optimalidade” não ser um conceito absoluto, antes relativo – dependendo da variável que for seleccionada como objectivo (o que é ideologicamente irritante).

 

  • Ora isto tem consequências directas na estabilidade da Zona Euro (que não vêm agora ao caso) e nos previsíveis efeitos da globalização (que é o que aqui interessa).

 

  • Inicialmente, a base teórica para a “optimalidade” do comércio internacional eram as vantagens comparativas, pondo-se no mesmo plano o que a Natureza dá (matérias primas, clima) e o que o Homem cria (o saber fazer, as tecnologias).

 

  • O vinho ia de Portugal – porque o solo e o clima da ilha britânica só davam vinhos medíocres; os tecidos vinham de Inglaterra – onde a lã era abundante e de boa qualidade e a tecnologia textil estava mais avançada. Tudo, nesta Europa do séc. XVIII, decorria de igual para igual, com o comércio a transformar em complementaridades virtuosas o que sempre tinham sido incómodas limitações locais.

 

  • Complementaridade seria um modo mais prosaico, mas igualmente apropriado, de referir as vantagens comparativas com que a teoria continuava a explicar o comércio transfronteiriço, decorrido século e meio. Complementaridades entre as economias tecnologicamente avançadas – as quais toleravam mal a concorrência que umas às outras movessem nos respectivos mercados domésticos. Complementaridades com territórios periféricos, mais ou menos distantes, vistos como fontes abundantes de matérias-primas e mercados cativos para o escoamento de produtos manufacturados.

 

  • Longe das páginas dos manuais teóricos, porém, as vantagens comparativas eram não só aproveitadas, mas também disputadas com crescente agressividade. A chave para a compreensão desta nova realidade (a expansão colonial e a luta pelo “espaço vital”) era a palavra “cativo” – que a teoria tardou em interpretar. Não bastavam já as vantagens comparativas. Havia que impedir que outras economias avançadas viessem explorar em proveito próprio toda e qualquer complementaridade.

 

  • O período post-guerra ficou caracterizado por um forte movimento no sentido da reintrodução da livre concorrência no comércio internacional (com o GATT, hoje WTO). Livre concorrência não já circunscrita a matérias primas, bens manufacturados e a alguns serviços, mas estendida também às tecnologias – o que arrastou a livre movimentação transfronteiriça de capitais, mas não de pessoas.

 

  • Era ainda o quadro mental das vantagens comparativas que a teoria tinha para oferecer quando as economias mais avançadas começaram a exportar tecnologias já “maduras” (por isso sujeitas a forte concorrência no contexto do comércio transfronteiriço), a fim de libertarem recursos internos para novas tecnologias, novos produtos e novos serviços que criassem, por sua vez, novas complementaridades - e que lhes conferissem novas vantagens comparativas no plano internacional.

 

  • É claro que a exportação de tecnologias, num primeiro momento, gerava turbulência e desemprego nas economias de origem. Mas a livre movimentação transfronteiriça de mercadorias e de serviços mantinha aí a oferta sem rupturas – e as novas tecnologias rapidamente absorviam esse desemprego. Para mais, custos de produção substancialmente mais baixos nas economias de destino ajudavam a estabilizar os rendimentos reais nos mercados internos das economias avançadas.

 

  • Os movimentos transfronteiriços de capitais é que iam causando, aqui ou ali, crises, por vezes profundas, por vezes prolongadas. Mas a teoria não se detinha em tais ninharias: a movimentação de capitais e os efeitos que essa movimentação poderia causar eram-lhe estranhos. Os Bancos Centrais que tratassem disso – assim rezava a teoria.

 

  • A globalização baseada em complementaridades (tal como, antes, os impérios coloniais alicerçados em complementaridades), agora no quadro liberal de GATT/WTO, era algo que muito interessava às economias tecnologicamente avançadas: (i) viam renovadas e, quantas vezes, reforçadas as suas vantagens comparativas; (ii) viam estabilizados os rendimentos reais no interior das suas fronteiras; (iii) viam sustentado o nível de emprego das suas populações activas.

 

  • O problema era a restrição externa (possíveis deficits das BTC) e a imprevisibilidade do caudal de movimentos transfronteiriços de capitais - que só a focagem das tecnologias (tanto das novas, como daquelas que eram deslocalizadas) no comércio internacional permitia solucionar capazmente.

 

  • A realidade é que o comércio entre países, alicerçado em complementaridades, foi capaz de, num curto espaço de tempo, retirar da pobreza - não à custa de subsídios estatais, não há custa de donativos internacionais, mas através do trabalho remunerado e da movimentação transfronteiriça de capitais - centenas de milhões de pessoas. Que melhor prova da “optimalidade” do modelo de mercado!

 

  • E, no entanto, quando a “livre concorrência” defendida por GATT/WTO começou a ocupar o papel das “complementaridades” no comércio transfronteiriço, o caso mudou de figura. É que as vantagens comparativas em ambiente de concorrência são radicalmente diferentes das vantagens comparativas em ambiente de complementaridade, sobretudo quando os custos de produção reflectem culturas completamente diferentes. E a teoria foi assim apanhada em contra-pé.

 

  • Com a globalização em ambiente de concorrência as vantagens comparativas passam a depender não só das tecnologias (logo, da inovação) e da procura solvente no espaço global, mas também da cultura que dê forma à economia de onde provêm os bens e serviços transaccionados.

 

  • Os rendimentos reais (ou seja, a inflação) até podem continuar bem ancorados. Mas o comércio transfronteiriço deixa de rimar espontaneamente com pleno emprego urbi et orbi– e os movimentos transfronteiriços de capitais ficam emaranhados, não mais fluindo todos no mesmo sentido.

 

  • Voltando ao princípio, o Tratado de Methuen, fruto temporão das complementaridades geradoras de comércio transfronteiriço, jamais poderia ter visto a luz do dia num ambiente de livre concorrência: nem nunca se colocou a hipótese de Portugal celebrar com a França um tratado semelhante para o vinho; nem a Inglaterra viu alguma vez interesse em celebrar com a Flandres um tratado para o comércio de tecidos.

 

  • Forçoso é concluir, então, que a livre concorrência no comércio internacional põe frontalmente em causa a pretensa “optimalidade” do modelo de mercado. Só em circunstâncias muito especiais (ex: a complementaridade no comércio transfronteiriço) é que todos poderão sair a ganhar, como a teoria ainda hoje pretende.

 

  • Em ambiente de concorrência, porém, para que o pleno emprego e a estabilidade dos rendimentos reais sejam, pelo menos no plano teórico, possíveis, as preferências individuais e as tecnologias aptas a satisfazê-las terão de conhecer uma diversificação rápida e extensa. Desde que a restrição externa não estrague a festa – está bem de ver.

 

JANEIRO de 2017

António Palhinha Machado

 A. Palhinha Machado

TRETAS # 18

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OU O GRILO COME A ALFACE, OU VAMOS TER DE JEJUAR

 

  • Pois é. Pedir emprestado tem essa coisa aborrecida que é a obrigação de restituir. Um ferro! Que bom seria terem os credores fraca memória – ou um enorme coração, para inscreverem as nossas dívidas numa folha de alface e darem-na ao grilo.

 

  • Por cá, a Dívida Pública (um dia irei à Dívida Privada) já está em 130% do PIB nominal (PIBn de ora em diante)…and counting. Provavelmente mais, por força das responsabilidades contingentes subscritas pelas empresas públicas que o Governo não pode deixar falir. Alguma vez será paga?

 

  • Resposta pronta: sim, não, talvez, depende.

 

  • Mas antes de ir à resposta sempre digo que relacionar o stock de Dívida Pública com PIBn é como comparar batatas com cebolas - ou um monte de pedras com um caudal de água.

 

  • O PIBn é um fluxo, num dado intervalo de tempo (o ano civil, por regra), de bens e serviços valorizados a preços correntes. A Dívida Pública, essa, é uma quantidade acumulada (um stock) numa data que nem sempre coincide com o último dia do intervalo de tempo a que o PIBn respeita.

 

  • O que faz sentido mesmo é comparar o serviço da Dívida Pública (os pagamentos devidos de capital e juros) com o PIBn – para ter uma medida do esforço, ao nível da esfera real da economia e do rendimento gerado, que é exigido para servir essa dívida. Por exemplo: o serviço da Dívida Pública grega nos próximos 10 anos é inferior ao da Dívida Pública portuguesa, apesar de o stock de Dívida Pública grega ser muito superior ao da Dívida Pública portuguesa. Mas seja “Dívida Pública/PIBn”.

 

  • Há que começar por dizer que a pergunta está mal formulada. O que verdadeiramente interessa não é pagá-la por inteiro, mas reduzi-la a uma dimensão que seja “sustentável”. Mas, que raio será um stock de Dívida Pública “sustentável”?

 

  • As opiniões sobre o que entender por “sustentável” são mais que muitas. Mas, para o que aqui importa, limito-me a acolher dois critérios. Um, de tesouraria: que seja ínfima a probabilidade de o serviço da Dívida Pública ser interrompido (vulgo, default) no decurso do ciclo económico. Outro, macroeconómico: que a política orçamental possa ser prosseguida sem pôr em causa o equilíbrio interno (nível do desemprego, nível do produto potencial) e/ou o equilíbrio externo (BTC não deficitária, nível das disponibilidades sobre o exterior) da economia.

 

  • À luz de qualquer destes critérios, o stock da Dívida Pública será “sustentável”, crê-se, se se situar claramente abaixo de 60% do PIBn. Contando com uma prudente folga para reagir a crises imprevistas, digamos que 40% do PIBn. Assim sendo, não há que pagá-la até ao último cêntimo. Basta reduzi-la no equivalente a 90% do PIBn. Coisa pouca. Nada de pessimismos, portanto!

 

  • Como se sabe, a inflação dilui o esforço de servir dívidas, salvo se estas estiverem indexadas à inflação, ou se forem denominadas em moeda estrangeira. Se conseguirmos o feito de manter invariante o stock da Dívida Pública todo o tempo necessário, então, mesmo sem crescimento económico, a resposta é: SIM - bastará para tal uma inflação média de 12,5%/ano para, decorridos 10 anos, voltarmos a ter uma Dívida Pública “sustentável” sem nada fazer.

 

  • Sendo denominada em Euros, a nossa Dívida Pública é como se fosse toda ela em moeda estrangeira – e um processo inflacionista com aquela amplitude teria de ocorrer, não só internamente, mas também transversalmente em toda a Zona Euro. Duvido que a Alemanha esteja pelos ajustes.

 

  • Se confiarmos, apenas, na inflação, ainda sem crescimento económico, para repor a sustentabilidade de uma Dívida Pública estática, com a inflação média que a Alemanha parece tolerar bem (e que o BCE toma por alvo: 2%/ano), demorariamos só 60 anos (quase 3 gerações!) a lá chegar.

 

  • Mas algum crescimento económico deverá haver, entretanto. Admitindo que, no futuro previsível, a inflação na Zona Euro não descolará dos 2%/ano (porque com a Alemanha não se brinca), a economia portuguesa terá de crescer pelo menos 10,3%/ano para que o actual stock de Dívida Pública seja finalmente “sustentável” daqui a 10 anos.

 

  • E ao ritmo a que a nossa economia tem crescido no período pós-troika (aliás, superior ao crescimento médio anual nos 15 anos precedentes) nem daqui a 30 anos atingiremos o nirvana da “sustentabilidade”. Logo, neste cenário do stock de Dívida Pública invariante, a resposta é: NÃO – ou, vá lá, TALVEZ, mas só se, entretanto, a paciência dos credores não se esgotar.

 

  • A realidade, porém, é que o stock da Dívida Pública nunca deixou de aumentar no passado recente. É certo que alguns dos maiores “saltos” resultaram do reconhecimento de passivos até então escondidos e que as variações no stock da Dívida Pública não têm que reflectir fielmente os deficits orçamentais. Mas, à falta de melhor, é aos deficits orçamentais que vou recorrer como indicador.

 

  • Ora, com deficits orçamentais da ordem de 2%-2.5% do PIBn, e o stock da Dívida Pública a aumentar nessa medida, a nossa economia terá de crescer a uma taxa média de 2,9%/ano para que, ao fim de 25 anos, voltemos a ter uma Dívida Pública “sustentável” aos olhos dos nossos credores.

 

  • Não será um crescimento à “tigre asiático”, ou à “tigre celta”, mas teremos de recuar até ao período da adesão à, então, CEE para encontrar dinamismo parecido. Resposta: TALVEZ - com muita dificuldade, se tudo correr muito bem e os credores tiverem uma paciência franciscana.

 

  • Como o caso da Grécia (referido mais acima) mostra, o maior defeito deste indicador “Dívida Pública/PIBn” é ele não reflectir minimamente a calendarização dos reembolsos e o peso dos juros - o serviço da dívida, em suma. E é, precisamente, o peso dos juros que faz detonar o 2º critério de “sustentabilidade”, mesmo antes de causar a ruptura da tesouraria do Estado (1º critério).

 

  • Até hoje a Dívida Pública portuguesa tem sido “sustentada” unicamente pela estratégia de política monetária do BCE (quantitative easing) que mantém acima do par as Dívidas Públicas das principais economias europeias (mas não a portuguesa) e assegura a liquidez da Dívida Pública portuguesa.

 

  • Mesmo assim, a nossa Dívida Pública está a pagar um prémio de risco (relativamente à Dívida Pública alemã) da ordem dos 3%/ano para ter investidores interessados – muitos deles, e em número cada vez maior, por cá residente (Bancos, FGD, FESS, Fundos de Pensões e simples cidadãos).

 

  • Hélàs! Como tudo na vida, também esta estratégia do BCE há-de ter um fim.O que nos acontecerá quando o cenário macroeconómico tradicional for reposto: a economia portuguesa e as economias nossas parceiras a crescerem 2%/ano (ou um pouco mais), a inflação a tentar furar o tecto dos 2%/ano e, consequentemente, as taxas de juro de referência a colarem-se aos 4%/ano?

 

  • Se, num futuro assim, os nossos credores continuarem a ver-nos com bons olhos (o que é dizer: se aquele prémio de risco não aumentar) as yields da nossa Dívida Pública rondarão os 7 %/ano (para mais e não para menos). E, mesmo se aquele prémio de risco não variar (o que é pouco provável), os juros a pagar anualmente saltarão dos actuais 5% do PIB (aprox.) para quase 10% do PIB. Não instantâneamente, mas à medida que o stock da Dívida Pública for sendo refinanciado.

 

  • Cabe, então, perguntar: A economia suportará um acréscimo da carga fiscal da ordem dos 5%-6% do PIB? Se não suportar, que despesas públicas serão sacrificadas para que o deficit se mantenha dentro dos limites do Pacto Orçamental? Ou deita-se a toalha ao chão, pede-se emprestado também para pagar juros e coloca-se o stock da Dívida Pública numa trajectória explosiva apontada ao default?

 

  • Para os mais distraídos, convém lembrar que, em caso de default, a impossibilidade de financiar no exterior o deficit (incluindo juros) levaria directamente ao lançamento de empréstimos internos forçados (ditos “patrióticos”), à redução drástica das transferências sociais e dos serviços públicos não ligados ao exercício da soberania – e, quase de certeza, à atrofia desta ou daquela função de soberania.

 

  • Como facilmente se percebe, a “sustentabilidade” da Dívida Pública não é compatível com um stock que não pára de crescer, por pouco que seja, ano após ano. A dura realidade é que nenhum Governo até hoje quis, ou conseguiu pôr-lhe travão.

 

  • E outra realidade não menos dura é que só com um stock estabilizado (isto é: que não aumente) será possível negociar a re-estruturação da Dívida Pública em condições, se não as mais desejáveis, pelo menos não excessivamente recessivas – e minimamente honrosas.

 

  • Vendo tudo isto, espero veementemente que os credores (incluindo os credores que residem por cá) condescendam em registar a nossa Dívida Pública numas folhas de alface para darem ao seu grilo de estimação - e que o bichinho não perca o apetite.

DEZEMBRO de 2016

António Palhinha Machado

A. Palhinha Machado

 

CATURRICES XLV

 

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PENSÕES E EQUIDADE FISCAL

 

  • Por muito que custe, a realidade impõe-se: não há pensões a caírem do céu, qual maná. Seja em que regime for, as pensões acabam sempre por ser pagas pelo rendimento que a população activa envolvida no processo produtivo gerar. Rendimento que, recordo, é variável por natureza.

 

  • No modelo de redistribuição as pensões são pagas pelo apuro disponível das contribuições – que varia. No modelo de capitalização, por juros, dividendos, rendas e mais valias – tudo variável.

 

  • Por força desta variabilidade intrínseca, nenhum dos dois modelos, partindo de contribuições fixas (o que é dizer: fixadas por unidade de “benefício definido” no ano inicial da situação de reforma), conseguirá assegurar, seja qual for a conjuntura económica, benefícios definidos de antemão.

 

  • Acontece, porém, que, desde sempre, tudo tem girado em torno da promessa de uma pensão para a vida – uma pensão certa, jamais reduzida, paga a tempo e horas. Um benefício definido, está bem de ver.

 

  • Foi assim com von Bismark, para convencer os povos germânicos a formarem o Deutsches Reich, mesmo contra a vontade dos seus príncipes. Foi assim com Salazar, para garantir a fidelidade da aparelho do Estado e, em especial, dos militares. Foi assim com Marcelo Caetano, numa tentativa vã de manter todos do seu lado. É assim hoje em dia, por razões em tudo semelhantes.

 

  • Ora, se nenhum dos regimes de pensões com contribuição fixa dá a certeza de benefícios definidos, para que estes sejam pagos alguém terá de os garantir. No caso, o Estado com os seus impostos - ou recorrendo à Dívida Pública, se os impostos não chegarem para tudo.

 

  • É este aval do Estado – entre nós em vigor, mas nunca formalizado - que torna possível as pensões com benefício definido, tal como hoje as conhecemos. E é este aval do Estado que vai colocar a questão num plano completamente diferente: o da equidade fiscal.

 

  • A equidade fiscal assenta em duas regras, simples de enunciar, mas difíceis de levar à prática: (i) os custos da soberania são suportados por todos, na medida da riqueza e do rendimento de cada um; (ii) as transferências sociais vão dos que mais podem para os que mais precisam.

 

  • Ora, quando se mistura pensões diferenciadas e impostos (ou Dívida Pública), o diabinho da equidade fiscal faz das dele: (i) o dinheiro que sai do Orçamento do Estado para completar pensões tem a natureza de uma transferência social; (ii) logo, parte dos impostos (actuais ou futuros) estará a financiar uma parte, maior ou menor, das pensões – incluindo as pensões mais elevadas.

 

  • Teremos, então, contribuintes fiscais de menores posses a financiarem pensões a que, eles-próprios, nunca terão direito - e a 2ª regra da equidade fiscal é mandada às urtigas.

 

  • A não ser que, numa pirueta de dialética, se defenda que o pagamento de todas as pensões, mesmo aquelas bem acima da mediana dos rendimentos familiares tributados, é apenas mais um custo de soberania (a 1ª regra).

 

  • De alguma maneira, até dir-se-ia que é – dado que uma pensão com benefício definido que tenha de ser suportada, ainda que parcialmente, pelo Orçamento do Estado, em tudo se assemelha às remunerações do funcionalismo público. Tal como estas: (i) também é assegurada pelos recursos financeiros do Estado; (ii) também é para a vida; (iii) também é certa; (iv) também jamais diminuirá; (v) e, espera-se, também é para ser paga pontualmente.

 

  • Quando o regime de pensões assenta em contribuições fixas e garante benefícios definidos a questão de fundo é, assim: como desenhá-lo para que nunca seja um atropelo à equidade fiscal.

 

  • Começando pela modalidade de “redistribuição”, que é a que nos toca mais de perto (e, talvez, a mais complexa). Fixar um tecto para as pensões (“plafonamento”) só não conflituará com a equidade fiscal se esse tecto for suficientemente baixo para haver a certeza absoluta de que a evolução previsível da estrutura demográfica nunca as empurrará para o Orçamento do Estado. Dito de outro modo: que não haja que recorrer a transferências sociais para as pagar, mês após mês.

 

  • Logicamente, este tecto vai depender: (i) da estrutura demográfica na situação inicial; (ii) da evolução que a estrutura demográfica registar daí em diante; (iii) da contribuição fixa que se considerar suportável.

 

  • Pode acontecer: (i) que um tecto para as pensões considerado socialmente atractivo e politicamente interessante vá exigir contribuições fixas que atiram para níveis insustentáveis os custos de contexto sobre a actividade económica; (ii) ou que a contribuições fixas comportáveis pela actividade económica corresponda um tecto visto como inaceitável, social e politicamente. De facto, é este o dilema nas populações em progressivo envelhecimento, como a portuguesa.

 

  • Forçoso é concluir, então, que o “plafonamento” dificilmente colocará o modelo de “redistribuição” com benefícios definidos do lado certo da equidade fiscal.

 

  • Quanto ao modelo de “capitalização”, não há “plafonamento” que resista à imprevisibilidade dos rendimentos de capital. Este modelo, seja qual for a versão, só é compatível com pensões de benefício definido, com ou sem “plafonamento”, se contar com o Orçamento do Estado para suprir o que faltar.

 

  • Como ninguém está ao abrigo de perder parte (ou, mesmo, a totalidade) do capital que tenha investido, não é de todo impossível que o capital formado pelo pensionista (actual ou futuro) desapareça de um dia para o outro, arrastado por menos valias. E, com o capital, desaparecerá também a possibilidade de ele continuar a receber uma pensão, por modesta que seja.

 

  • O modelo de “capitalização” lança, assim, luz sobre a terceira vertente de qualquer regime de pensões: a solidariedade inter-geracional (mais chãmente, coesão social) – e é esta, por ventura, a sua maior virtude.

 

  • O problema é, então, como conciliar equidade fiscal e coesão social com benefícios definidos e contribuições fixas que não agravem os custos de contexto? Dir-se-ia um problema insolúvel.

 

  • Na realidade, este problema admite duas soluções: (i) uma, ainda no âmbito do modelo de “redistribuição”; (ii) a outra, como um seguro.

 

  • No modelo de “redistribuição” o benefício definido (a pensão) terá de ser um só, igual para todos os pensionistas.

 

  • Deste modo, a equidade fiscal e a coesão social serão respeitadas: todos suportarão, na exacta medida das suas posses, uma pensão de que cada um irá beneficiar, chegado o tempo. E calcular o valor dessa pensão envolve, apenas, duas variáveis: (i) a contribuição fixa que não agrave insuportavelmente os custos de contexto; (ii) a folga orçamental destinada a transferências sociais.

 

  • Converter o regime de pensões num seguro vitalício de rendas certas (que tem o Estado como seguradora) segue exactamente as mesmas linhas – a saber: um só valor para todas as pensões. Valor que é determinado em função: (i) da contribuição fixa (neste caso, o prémio) que a actividade económica conseguir comportar; (ii) do saldo orçamental que seja programado.

 

  • Tudo isto revela o porquê de as pensões de velhice serem, entre nós, uma questão verdadeiramente intratável – a saber: querer benefícios, simultaneamente, definidos e diferenciados, como se as contribuições efectuadas em nome de cada futuro pensionista fossem formando uma carteira de investimentos sem risco.

 

  • Investimentos sem risco, esses, só existem no mundo dos sonhos.

 

Novembro de 2016

António Palhinha Machado

 

A. Palhinha Machado

 

CATURRICES XLIV

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E QUE TAL UMA PENSÃO DE LONGA PERMANÊNCIA?

 

  • “Descontei. Tenho direito à reforma, pois então!”. É este o argumento incontestado que serve de ponto de partida a todas as conversas sobre pensões de reforma (atenho-me aqui às pensões de reforma por velhice, unicamente).

 

  • Talvez as coisas não sejam tanto assim, por muito que isso custe aos actuais e futuros pensionistas.

 

  • Fala-se de quê, quando se fala de “pensões”? Na realidade, fala-se de realidades que não são de todo conciliáveis, contrariamente ao que uma leitura apressada daquele argumento pode levar a crer.

 

  • É que há regimes de pensões e regimes de pensões. 16, para ser mais exacto – que tantos são, em abstracto, os emparelhamentos possíveis entre: (i) os modos de gerar o rendimento que é pago como pensão (redistribuição versus capitalização); (ii) os maneiras de quantificar uma pensão (benefício definido versus benefício variável); (iii) os tipos de contribuição (contribuição fixa versus contribuição variável); (iv) as soluções para financiar a organização que administra o regime de pensões (usando as próprias contribuições versus dotações do Orçamento do Estado).

 

  • Não é meu propósito enumerar os méritos (absolutos e relativos) de cada um destes 16 regimes de pensões – até porque alguns envolvem características impossíveis de conciliar. Interessa-me, sim, descobrir a lógica de um regime de pensões – o nosso - que foi inicialmente pensado só para o funcionalismo público, mas que as grandes empresas de então se apressaram a copiar.

 

  • Porque o nosso regime geral de pensões é, no essencial, aquele que foi lançado nos primórdios do Estado Novo: redistribuição+benefício definido+contribuição fixa+organização financiada pelas próprias contribuições.

 

  • Na modalidade de “redistribuição”, são os descontos cobrados aos contribuintes actuais que vão directamente (ou quase) para o bolso dos pensionistas actuais. Um processo aparentemente simples, mas que exige uma organização centralizadora: (i) que proceda à cobrança das contribuições; (ii) que controle o direito à pensão; (iii) que processe o pagamento das pensões; (iv) que combata as fraudes. Uma organização complexa e cara, como é bem de ver.

 

  • Entre nós, a organização que administra o regime geral de pensões é financiada inteiramente pelas contribuições. E, por consequência, haverá sempre uma parte, maior ou menor (consoante a eficiência organizativa), das contribuições que não reverte para o bolso dos pensionistas. Daí o “quase” do ponto anterior.

 

  • Mas será a modalidade de “redistribuição” compatível com contribuições fixas e pensões de benefício definido – como o regime geral português, decorrido todo este tempo, ainda presume?

 

  • No “modelo de redistribuição” o “bolo” disponível para as pensões corresponde ao volume das contribuições exigíveis (que depende da massa salarial das empresas - a qual, por sua vez, é função do nível de actividade económica), a que há que deduzir as contribuições que ficam por pagar e os custos de funcionamento da referida organização.

 

  • O que, por fim, cabe a cada pensão depende: (i) obviamente, do “bolo” disponível; (ii) do número de pensionistas (e, consequentemente, da evolução da estrutura demográfica); (iii) do critério que seja adoptado para diferenciar pensões (e há vários).

 

  • Para que o benefício definido seja respeitado, o montante disponível para pagar pontualmente as pensões, mês após mês, tem de ser pelo menos igual ao total das pensões a pagamento, de acordo com os respectivos benefícios definidos. Ora, tal só está assegurado, sejam quais forem os benefícios definidos, quando a relação “população empregada/número de pensionistas” (o rácio de dependência) é bastante elevada (maior que 8, seguramente).

 

  • Numa população crescentemente envelhecida, o rácio de dependência vai diminuindo e chegará a um ponto em que o regime, para manter os benefícios definidos, terá de ir aumentando progressivamente as contribuições – com reflexos imediatos: (i) nos custos de contexto da actividade económico (que aumentam); (ii) na competitividade internacional da economia (que se deteriora); (iii) nas oportunidades de emprego (que tendem a esfumar-se, sobretudo nas actividades inovadoras).

 

  • Mesmo se circunscrito, apenas, ao funcionalismo público (como era a versão inicial) - com a regra do “emprego para a vida” que prevalece na função pública e a evolução demográfica que a população portuguesa tem conhecido nos últimos 50 anos, este regime de pensões ter-se-ia debatido há muito com o trilema: (i) ou impor contribuições variáveis (leia-se: em quarto crescente), em função dos benefícios definidos; (ii) ou conceder, apenas, benefícios variáveis (leia-se: em quarto minguante), para não mexer nas contribuições fixas; (iii) ou abandonar de vez o modelo de “redistribuição”.

 

  • Cedo ou tarde, a realidade – a realidade demográfica, a realidade económica e, até, a realidade de umas contas simples – impor-se-ia: contribuições fixas e benefícios definidos só rimam em economias que não conhecem crises, com uma estrutura demográfica em pirâmide bem desenhada e em que os reformados têm a gentileza de morrer cedo sem deixar cônjuge sobrevivo.

 

  • Dito de outro modo. Se por cá prevalecesse o modelo de “redistribuição” puro e duro (como políticos vários insistem em dizer que prevalece – pois a alternativa da “capitalização” é vista como propria de pensões de má nota), cada pensionista actual teria direito à sua fatia (maior ou menor, consoante a diferenciação de pensões) de um “bolo” que, afinal, varia de mês para mês.

 

  • E, como o “bolo” disponível, proporcionado por contribuições fixas, é variável, tal como o número de pensionistas é variável, cada pensão também teria fatalmente de variar - e o tal argumento que se crê incontestado é, na realidade, falho de razão: quem descontou tem direito, sim, a uma pensão - mas não a uma pensão certa e igual todos os meses (benefício definido).

 

  • O argumento só procederia se as contribuições actuais fossem variáveis, certamente crescentes, com efeitos perniciosos no contexto económico e na distribuição de rendimentos entre gerações – ou se os actuais pensionistas, quando ainda empregados, tivessem sido já chamados a suportar contribuições variáveis.

 

  • Mas o certo é que as pensões do regime geral, não só continuam a ser pagas de acordo com o benefício definido, mas também esta condição permanece intocada. Como é isto possível?

 

  • Nos tempos de antanho, do contrato de trabalho na função pública constava uma cláusula que conferia ao funcionário na situação de reforma uma pensão certa e actualizável (uma espécie de super-benefício definido). Era uma obrigação contratual a inscrever no Orçamento do Estado (se era sustentável ou não, é uma outra história).

 

  • Já no ocaso do Estado Novo, Marcelo Caetano, com pouco senso, estendeu este regime a pensionistas (actuais e futuros) que nunca integraram o funcionalismo público. Ninguém se apercebeu então (e ninguém quer admitir hoje em dia) que se tratava, não já de uma obrigação com origem em contratos de trabalho (da função pública), mas sim de um aval do Estado, dado espontaneamente.

 

  • Em resumo: as pensões com benefício definido são sustentadas, não pelas contribuições fixas, mas pelo aval do Estado.

 

  • E ainda que seja um aval do Estado sem beneficiários identificados, sem uma estimativa dos valores exigíveis (pelo menos anualmente) e ad perpetuum, o mais gravoso é que nunca preencheu as formalidades que são legalmente exigidas para o acto. Para todos os efeitos, é um aval de duvidosa legalidade (mas que pode ser sanada a qualquer momento).

 

  • O problema de fundo é, porém, outro. Por força deste aval, cada contribuinte está a garantir (e a suportar) o pagamento de pensões que podem exceder amplamente o seu próprio rendimento pessoal ou familiar – e a sua futura pensão.

 

  • Será justo que quem ajuda a pagar estadias em pensão de 4* tenha de se contentar com uma pensão de uma só estrelinha, quando chegar a sua vez?

 

Novembro de 2016

 

António Palhinha MachadoA. Palhinha Machado

CURTINHAS Nº CXLIX

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GASTAR NA MASSA E POUPAR NO FARELO

 

  • Pois é, Leitor. Somos especialistas em ficar a ruminar, deliciados, fait-divers, fingindo não ver aquilo que é verdadeiramente importante. Agora, são as remunerações atribuídas à novel Administração da CGD, como se pagar-lhes € 2 M/ano - ou mesmo € 3 M/ano fosse um exagero sem medida e um crime lesa-CGD.

 

  • Valem esse dinheiro? Não sei. Poderiam almejar remunerações semelhantes em mercados bancários mais desenvolvidos e mais competitivos? Tão-pouco sei. Mas suspeito que um ou outro não aguentaria o ritmo de trabalho, a pressão e a exigência de resultados que são o pão-nosso-de-cada-dia na Banca por esse mundo fora.

 

  • Porém, reconheço sem esforço que uma remuneração total daquela ordem de grandeza numa massa salarial que rondará os € 600 M, ou em encargos de estrutura de quase € 1,000 M, é uma insignificância. E muito mal andará a CGD se forem estes € 3 M que lhe vão desequilibrar a tesouraria - ou estragar os resultados anuais - num Balanço de mais de € 90,000 M (segundo as Demonstrações Financeiras Individuais recentes).

 

  • Além do mais, a remuneração é, apenas, o reverso de uma moeda que tem na face metas e métodos. Metas a atingir num dado horizante temporal – o programa. Métodos para aferir, com inquestionável precisão e meridiana tranaparência, se tais metas foram cabalmente atingidas nos prazos inicialmente previstos - enfim, o desempenho.

 

  • Ora, é isto que a nós, accionistas e contribuintes, verdadeiramente importa - sem que tenha aparecido ainda quem se mostre interessado em debater, com um módico de razoabilidade, quer o programa que a nóvel Administração vai ter de aplicar, quer o modo como será avaliado o seu desempenho.

 

  • Não tenho a menor dúvida de que gerir bem um Banco é complicado: o risco será sempre o companheiro de todos os momentos. Num ambiente assim, e no plano puramente teórico, o método para ajuizar do desempenho começa por envolver um simples indicador: RARORAC/Risk Adjusted Return on Risk Adjusted Capit

 

  • Trocado por miúdos, isto significa que o desempenho é aceitável – e a remuneração, justificada - se, a posteriori, a taxa de rentabilidade do capital afecto ao negócio não ficar abaixo de um dado objectivo de rentabilidade que tenha sido fixado de antemão.

 

  • Mas, nada de confusões, Leitor:

 

º A taxa de retorno ponderada pelo risco (risk adjusted return) nada tem a ver com as taxas de rentabilidade que os Bancos, em todas as latitudes, divulgam com ar prazenteiro;

º Os Capitais Próprios que os Bancos correntemente exibem nas suas Demonstrações Financeiras só por acaso fortuito reflectem, já as insuficiências em matéria de provisões, já a capacidade para absorver perdas não esperadas sem pôr em causa a sua continuidade.

 

 

  • Ainda que os Bancos operem em ambientes que ressumam risco (riscos vários), eles, na informação financeira que divulgam, querem fazer crer - a nós, pobres mortais – exactamente o contrário: (i) que sabem manter o risco à distância; (ii) que as perdas em que incorreram foram fatalidades inevitáveis e irrepetíveis. Enfim, um mundo de faz-de-conta.

 

  • A dura realidade é que taxas de rentabilidade de Capitais Próprios (ROE/Return on Equity) agradáveis à vista podem provir de realidades muito diversas:

º Boa gestão, numa conjuntura favorável;

º Excelente gestão, numa conjuntura adversa;

º Perdas esperadas insuficientemente provisionadas;

º Ocultação de perdas já incorridas;

º Acentuado desequilíbrio entre prazos do Activo e do Passivo (mismatch temporal, vulgarmente referido como “surfar a curva de rendimentos”);

º Capitais Próprios diminutos para a dimensão do Balanço e, consequentemente, inadequados face ao risco a que a CGD (é a CGD que tenho aqui em mente) se encontre exposta.

 

 

  • Ponderar os proveitos pelo risco (risk adjusted return) mais não é que dar expressão às perdas esperadas a que a CGD se expôs (mais as perdas em que já incorreu) para obter os resultados que estiver a exibir.

 

  • Mas esta é apenas uma parte (o numerador) da questão. A outra parte (o denominador do RARORAC) são os Capitais Próprios, não aqueles contabilizados, mas aqueles outros que a CGD teria de dispor (se não dispuser já) para não ver a sua continuidade perigar por efeito de perdas não esperadas e de eventuais insuficiências nas provisões para perdas esperadas (e para as perdas já incorridas). Afinal, risk adjusted capital, em inglês.

 

  • Por tudo isto, o rácio de rentabilidade calculado directamente a partir dos resultados apurados de acordo com os ditâmes fiscais (como vulgarmente se faz) é um mau indicador da qualidade do desempenho.

 

  • Por tudo isto, também, quando se fixar objectivos à novel Administração da CGD há que estabelecer, além de um objectivo plausível para o RARORAC:

º As regras para o reconhecimento contabilístico das perdas entretanto incorridas;

º As regras para estimar e provisionar as perdas esperadas;

º Os limites para o mismatch temporal;

º O modo de medir a influência do ciclo económico na construção dos resultados;

º Enfim, o método de estimar as perdas não esperadas, a partir das perdas observadas, para desenhar uma estratégia de capitalização consequente.

 

 

  • Mas não basta. Para medir, com justeza, o desempenho da nóvel Administração é igualmente imprescindível fixar:

º O risco máximo tolerável em cada uma das Linhas de Negócio que a CGD empreender;

º O limite máximo de endividamento admissível para a CGD, sem esquecer as posições passivas em contratos contingentes (como, por exemplo, garantias e a subscrição de instrumentos derivados);

º O peso no Activo da CGD das aplicações financeiras facilmente liquidáveis com custos de transacção insignificantes;

º As soluções de financiamento em condições de mercado ao dispor da CGD, em caso de necessidade.

 

  • Sabendo bem que a CGD não conta hoje – nem provavelmente contará no futuro previsível – com associadas que lhe proporcionem 2/3 dos resultados consolidados, ou com accionistas dispostos a sustentar-lhe a liquidez, mesmo em conjunturas internacionais adversas.

 

  • Só tendo tudo isto presente será possível avaliar com bom fundamento o desempenho da nóvel Administração. E só então se poderá concluir sobre se a remuneração hoje tão discutida era bem merecida – ou, feitas as contas, foi mais dinheiro deitado à rua.

Novembro de 2016

António Palhinha Machado

 A. Palhinha Machado

 

 

CURTINHAS Nº CXLVIII

 

CGD.jpg

 

wishful thinking

 

  • Pois é, Leitor. Gerir um Banco não é nada fácil - porque o risco acaba sempre por baralhar até a mais ponderada das decisões. E relançar um Banco é mesmo difícil - para mais se ele depender fortemente de uma economia em estado periclitante, como a nossa.

 

  • Dir-se-á: “Tem bom remédio! Não se exponha ao risco e já não terá problemas”. Era bom, era! Só que a afirmação “Banco sem risco” é uma contradição nos próprios termos – e digo porquê.

 

  • Um Banco, qualquer Banco Comercial, tem uma face “macro” e uma face “micro”. A capacidade legal de criar liquidez e o facto de ser um elo do sistema de pagamentos constituem a face “macro” (a teoria só vê esta face). Mas, para os seus accionistas (face “micro”) um Banco é só um outro mais Veículo de Investimento - ao qual a lei confere prerrogativas únicas (que não vêm agora ao caso), o que muito os atrai.

 

  • E como outro qualquer Veículo de Investimento, ele terá de se expor continuamente ao risco para conseguir remunerar o esforço financeiro que os seus accionistas fazem. É que nos mercados financeiros onde actua não há almoços grátis (o activo financeiro sem risco é uma ficção teoricamente útil, mas nada mais que isso).

 

  • Ora, nos mercados financeiros, o risco surge sob as mais variadas formas: (i) risco de crédito (o devedor não pagar); (ii) risco de contraparte (a contraparte no negócio falhar); (iii) riscos de mercado (preços de mercado, taxas de juro ou taxas de câmbio a darem para o torto); (iv) risco de refinanciamento ou, simetricamente, risco de reinvestimento (se os prazos médios do Activo e do Passivo remunerado não estiverem alinhados); (v) riscos operacionais (ex: erros na execução de uma operação); (vi) e muitos outros mais.

 

  • Como em qualquer Banco Comercial, no caso da CGD não faz sentido discutir Capitais Próprios sem conhecer a tolerância máxima (do accionista único) ao risco. E, inversamente, fixar-lhe a fasquia do risco máximo tolerável, só depois de o accionista único dizer quanto está na disposição de investir em Capitais Próprios.

 

  • Se o accionista quer que a CGD seja o financiador de último recurso da economia (o que parece estar implícito na reiterada afirmação “financiar a economia”), deverá estar preparado para efectuar, desde já, uma entrada de capital substancial - por duas razões principais: (i) para atenuar o risco de refinanciamento (o prazo médio do Activo da CGD de certeza que excederá largamente o prazo médio do seu Passivo remunerado, como hoje acontece) a CGD terá de dispor de Capitais Próprios a dobrar, uns, que sirvam de garantia, e outros mais, que financiem directamente uma parte das suas operações; (ii) para absorver as perdas prováveis no seu Balanço e assim evitar que tais perdas pronto contaminem o sistema de pagamentos.

 

  • Tudo se resume, afinal, a duas regras muito simples de enunciar: (i) manter Capitais Próprios suficientes para absorver as perdas prováveis (mais as perdas já incorridas, se as houver); (ii) evitar que o mismatch (o desequilíbrio entre prazos do Activo e do Passivo remunerado, recordo) seja tal que comprometa a capacidade de refinanciamento (na gíria, roll over) nos mercados financeiros.

 

  • Em economias com um baixo grau de sofisticação financeira (como é o caso da nossa), estas duas regras apontam, claramente, para a provecta “teoria dos três intervenientes”: uma teoria que limita a actividade da Banca ao financiamento das relações comerciais entre empresas – e, excepcionalmente, ao financiamento de stocks (o célebre Glass-Steagall Act (EUA, 1933-1999) e o não tão célebre Relatório Vickers (UK, 2011) - que muitos consideram serem o mínimo necessário para prevenir novas crises financeiras, como esta última – são lídimos exemplos desta teoria).

 

  • É uma teoria que coloca os depósitos bancários ao serviço exclusivo da oferta – tudo o contrário daquilo a que assistimos (cá e lá fora), desde o virar do século. Um serviço destinado, não a aumentar a capacidade produtiva (o que implicaria financiar o investimento, com consequente agravamento do desequilíbrio de prazos no Balanço do Banco financiador), mas a conciliar as tesourarias correntes das empresas – promovendo assim a plena utilização da capacidade produtiva instalada.

 

  • Segundo esta teoria, a função dos Bancos é fazer com que as trocas comerciais entre empresas aconteçam, mesmo que quem compre queira prazo para pagar e quem venda queira receber a pronto. Através do desconto bancário de letras (ou da aquisição de créditos comerciais, tão importante na finança islâmica), eles, Bancos, tornam possíveis negócios que, de outra maneira, nunca aconteceriam por as tesourarias das partes interessadas serem incompatíveis. E ao fazê-lo estão a contribuir para o maior dinamismo da actividade económica.

 

  • È uma linha de negócio esta (Trade Finance) que encaixa perfeitamente no propósito de “financiar a economia” sem sofrer as agruras do mismatch (e do risco de refinanciamento) – pelo que os Capitais Próprios podem ficar circunscritos à sua função de garantia.

 

  • Reúne, pois, características (empréstimos de prazo geralmente inferior a 1 ano, logo, menor exposição ao risco de refinanciamento e menores exigências de Capitais Próprios) que a recomendam vivamente para relançar a CGD: financiar as actividades comerciais das empresas nacionais, seja no mercado interno, seja na exportação.

 

  • Muito provavelmente, deparar-se-á com um obstáculo de natureza psicológica: Trade Finance é vista como uma linha de negócios rotineira (operações que se sucedem umas iguais às outras, envolvendo quase sempre os mesmos intervenientes), sem sofisticação (tudo se resume a créditos originados em simples transacções comerciais), sem pinga do glamour das operações financeiras que fazem notícia - e, para mais, arriscada (não é frequente estes financiamentos terem associadas garantias reais).

 

  • Nada mais errado. Para não ficar exposta a risco excessivo, a CGD terá de conhecer a fundo (e ser aí bem conhecida) os mercados onde tenham lugar as transacções comerciais que financiar. Na verdade, em Trade Finance o dinheiro emprestado não é uma commodity que possa ser gerida em grandes números (como, por exemplo, no crédito às Famílias).

 

  • Mas Trade Finance tem um perigo, muitas vezes ignorado: a taxa bruta de retorno (na gíria, o pricing) destes empréstimos não pode ignorar o efeito da elevada rotatividade da Carteira de Crédito Bancário gerada por esta linha de negócios. Explico.

 

  • Suponha, Leitor: (i) que o objectivo é uma Carteira de Trade Finance correspondente a 6x os Capitais Próprios (baixo, pelos padrões actuais); (ii) que o prazo médio destes empréstimos é de 120 dias (próximo dos padrões actuais) – logo, uma taxa de rotação anual de 3; (iii) que a taxa de incumprimento esperada é de 2% (o que é optimista). Neste cenário, a perda esperada nesta Carteira, num período de 1 ano, corresponderá a 36% dos Capitais Próprios afectos. Se o pricing não permitir provisionar a perda esperada, a CGD perderá um pouco mais de 1/3 dos seus Capitais Próprios logo no primeiro anos – e despencará em espiral.

 

  • Ah! O pricing! Ainda não o vimos referido, seja no caso da CGD, seja a propósito dos insucessos da Banca portuguesa. Mas não há Banca saudável se o pricing dos seus empréstimos não cobrir, pelo menos, a perda esperada – e qualquer insuficiência de provisões para riscos financeiros terá de ser levada a Capitais Próprios, diminuindo-os.

 

  • Agora, se o BdP continuar a tolerar que os Bancos, em competição insensata por quota de mercado, pratiquem pricings que manifestamente lhes não permitem provisionar por inteiro a perda esperada, sem que isso tenha consequências imediatas no apuramento dos respectivos Capitais Próprios – não é de estranhar que os actuais problemas da CGD regressem num futuro não muito distante.

 

  • Com tudo isto, estarei eu a defender para a CGD um modelo circunscrito a Trade Finance?

 

  • Não necessariamente. Qualquer Banco Comercial pode empreender sem rebuço linhas de negócio que envolvam financiamentos a mais longo prazo (como empréstimos para compra de habitação, financiamento de projectos de investimento ou, mesmo, subscrição de participações sociais) sempre que conte com mercados financeiros (Bolsas de Valores) eficientes que lhe permitam ir ajustando, com custos comportáveis, os prazos médios do Activo e do Passivo remunerado – o que é dizer, gerir o risco de refinanciamento e o risco de reinvestimento.

 

  • É óbvio que mercados financeiros assim não há hoje em Portugal, nem se anunciam para breve. E não há por duas razões principais – a saber: (i) a não neutralidade fiscal que penaliza os dividendos, premeia o endividamento e favorece as “empresas de patrão”; (ii) o modelo de redistribuição com benefício definido em que assenta o pensionamento das reformas.

 

  • Neste contexto (financeiro, fiscal, político e de supervisão prudencial), empurrar a CGD para essas tais linhas de negócio que envolvem financiamentos com prazo superior a 3 anos (a título de exemplo), sem a dotar de Capitais Próprios adequados (ou seja, suficientes para financiarem também a parcela maior dessas operações) é rematada insensatez.

 

  • Sim, as causas do problema que é a CGD podem residir no modelo de negócio que tem seguido nesta última década e meia e, bem assim, no modo trapalhão (com uma ou outra golpada pelo meio) como esse modelo de negócio foi levado à prática. Mas a história não acaba aí.

 

  • A discriminação fiscal dos dividendos, a ausência de Bolsas de Valores (e/ou de outros esquemas de negociação multilateral) com liquidez bastante, a poupança forçada encaminhada para esquemas de redistribuição (que abafa, à nascença, a formação de capital financeiro), o tratamento burocrático e abstruso das insolvências (apesar de a CGD beneficiar de um regime privilegiado na execução dos seus créditos) e, por fim, um Supervisor que rima mal exposição ao risco com Capitais Próprios – tudo isto é causa da debilidade dos Bancos de raiz nacional (como a CGD).

 

  • E, por maioria de razão, tolhe qualquer bom propósito que haja para a CGD.

 

(FIM)

 

 

PS: Nada de equívocos. As perdas que a CGD registou nos últimos anos não foram causadas unicamente pelo financiamento da actividade económica. As Carteiras de Crédito ao Consumo, de Participações Sociais e de Derivados, mais umas operações de Corporate Finance meio assaloiadas e de Project Finance por deferência para com os sucessivos Governos, também contribuiram de modo muito relevante para o resultado final.

  

Agosto de 2016

António Palhinha MachadoA. Palhinha Machado

 

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