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A bem da Nação

REFLEXÕES SOBRE BOLONHA -1

Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acordo feito à revelia dos professores e investigadores que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob as formas caudinas.

Vitorino Magalhães Godinho,

in “Os problemas de Portugal, os problemas da Europa”

2ª edição, Lisboa, Edições Colibri, 2010.

 

 

 

Não estarei presente nas reuniões, na Universidade, a discutir as melhorias do ensino no âmbito da reforma de Bolonha. A razão é simples, não acredito na eficácia de nenhuma melhoria do ensino universitário no âmbito e no interior desta reforma. Antes, a Universidade estava mal, estava doente, mas estava estruturalmente recuperável, enquanto agora, com Bolonha, ficou gravemente enferma, ferida de morte, diríamos mesmo, a exigir uma reforma que esteja nas antípodas da de Bolonha o que não é pensável dentro do modelo e da situação actual.

 

Da mesma forma que não acredito nas propostas de reformas na política económica, deste país ou de qualquer outro na Europa, enquanto se continuar a pensar que a saída da crise está numa maior intensidade na aplicação dos instrumentos que a geraram, creio que é impossível pensar uma outra Universidade dentro do quadro formal que criou a actual, o quadro de Bolonha.

 

Continuando a analogia com a crise actual, os governos europeus estão todos a optar, repentinamente, diga-se, pela redução drástica dos défices orçamentais, sendo claro para toda a gente que se trata de imperativos impostos pelos mercados financeiros. Com alguma tristeza, assistimos à dança não das cadeiras mas das afirmações que deixam de ser verdade de um momento para outro e nas mesmas pessoas, todas elas com altas responsabilidades políticas. É agora comum assistirmos a afirmações como por exemplo: a crise acabou e por isso acabam os estímulos económicos, acabam-se as medidas de protecção e de apoio social entretanto estabelecidas. Retiram-se as políticas porque deixaram de ter sentido? Produzem-se então os discursos que salvaguardam os mercados, os mesmos que geraram a crise, geram-se as políticas que satisfazem a sua ganância, para rapidamente recomporem o valor dos seus activos, impondo contra as populações e contra possivelmente o futuro dos respectivos países, fortes medidas de austeridade em tempo de crise. Mais do mesmo sistema como solução e, assim, nem sequer percebemos, como o afirma a Alta Autoridade dos Mercados financeiros francesa, Jean-Pierre Jouyet, “que nous étions en juin au même point qu'à l'automne 2008, mêmes incertitudes sur la capacité de résistance de nos banques, mêmes angoisses sur le tarissement du financement de nos économies et sentiment que la finance n'a en rien perdu de son opacité, de sa volatilité et de sa voracité. A la seule différence que les marchés seraient plus encore qu'hier instrumentalisés par des algorithmes qui arbitrent à la place des hommes et que les Etats n'ont plus les réserves suffisantes pour se porter au secours de leurs banques”.

 

Por se seguir o caminho inverso daquele que a situação exige, inverteu-se a lógica da democracia quanto à função do Estado. Uns obscuros departamentos de trading de alguns poderosos bancos de investimento, uns poderosos e quase que anónimos hedge funds, uns obscuros especuladores, o mercado afinal, determinam num obscuro mercado os valores dos CDS, em que ninguém nos explica como funcionam, como se determinam as suas taxas; questão extraordinariamente importante quando são estas taxas que vêm a determinar o valor das taxas de rentabilidade implícita dos títulos da dívida pública e o peso do serviço da dívida soberana, quando depois é este que determina o volume de impostos a receber e o volume de despesas a cortar, os grandes investimentos públicos para o futuro a desaparecer. Tudo isto em nome das gerações futuras. E assim se determina o sentido das políticas nacionais e se anula a democracia. Quer-se agora sacrificar os próprios Estados, a própria democracia, no altar da soberania absoluta dos mercados financeiros, cada vez mais opacos, comme il faut. O resto é a plêiade de discursos dos nossos políticos e dos nossos intelectuais a glorificar o caminho imposto pelos mercados financeiros, prisioneiros que são, explícita ou implicitamente, do sentido da eficiência que a estes continua ainda a ser atribuída. E tanto é assim que até os traders, ou gerentes desses obscuros agentes, nesses obscuros mercados, com bónus na ordem das muitas dezenas de milhões de dólares por ano, são também eles classificados, avaliados, por empresas também elas internacionais, globais, e também elas sujeitas às agências de notação. Com tanta avaliação, do primeiro ao último elo da cadeia, quem se atreve a pôr em dúvida a eficiência dos mercados? E aqui a analogia com Bolonha é imediata: também a Universidade vai ser submetida à mesma lógica de eficiência, à mesma lógica dos rating, das avaliações, mas com uma grande diferença. Enquanto os rating para os traders marcam o ritmo dos bónus futuros, o ritmo dos milhões de dólares a receber, na Universidade, porque não há dinheiro, não há sequer tostões. Os rating para os professores têm apenas uma função ideológica: cumprir o modelo! Quando na verdade o que deve ser posto em causa, e em primeiro lugar, é o próprio conceito de eficiência. Se não é assim, como perceber que, estando a caminho da terceira grande recessão e em que estamos a colocar em risco milhões de desempregados e lançar muitos mais milhões de crianças, que vão deixar de ter futuro por mergulharem em situação de pobreza de onde não poderão mais sair, como perceber que estamos a criar situações de redução de ritmos de crescimento e por aí a aumentar o risco de incumprimento dos países, a aumentar então e de novo os famosos CDS, a aumentar então a dívida soberana outra vez, enquanto garantida, passo a passo da cadeia de ligações, a eficiência dos mercados, e de acordo com as normas de eficiência próprias de cada elo da cadeia de ligações que caracteriza o sistema. Em suma, como aceitar que se corra o risco de pagarmos cada vez mais para passarmos a dever cada vez mais? Em suma, e em paralelo, como aceitar que se corra o risco de ter cada vez mais estudantes a saberem cada vez menos, sem que a responsabilidade possa ser deles? E, francamente, não o é. Mas também tenho a certeza de que dos professores também não é: só se ensina o que os outros aprendem e aqui ensinam ao máximo o que lhes é possível, mas o drama é que o possível é cada vez mais reduzido. Mas discutir o que queremos como possível, o que queremos como outra realidade e outra profundidade de ensino, é então discutir o sistema que produz e alimenta esta crise no ensino. Mas isso não se faz, porque estamos no melhor dos mundos possíveis de Pangloss, portanto, não questionável. De um lado, a crise financeira – e, do outro, a crise do ensino – em nenhum lado há culpados. É uma questão de mercado, de sistema! Por isso, ser-se contra o actual sistema de mercados financeiros é igualmente ser-se contra o sistema de Bolonha – são duas realidades aparentemente distintas, mas são apenas duas esferas de actividade diferentes mas com a mesma raiz de fundo: o modelo neoliberal!

 

A reforma de Bolonha é desde o seu princípio inscrita na mesma lógica de redução de despesas e do papel do Estado, mas tal como com a crise, o melhor é pensar que se algo está mal na Universidade está algures e não na reforma de Bolonha imposta pelo neoliberalismo, não no sistema que gera a situação de crise económica ou no sistema que gera a crise dos saberes e das aprendizagens. De novo a analogia da eficiência dos mercados financeiros com Bolonha é imediata. Que sentimos nós com estes três anos de Bolonha? Que trabalhamos muito mais, mas mesmo muitíssimo mais, e com uma certeza, ensinamos muito menos e os estudantes, esses, inegavelmente aprendem muito menos. Ensinamos menos. É então disso que se deve falar. E a que assistimos nós? À discussão sobre a aplicação de novas metodologias dentro de Bolonha, ou então à discussão sobre a reestruturação dos saberes, antes de se definir de que saberes é que estamos a falar ou, ainda melhor, de que aquisição de saberes é que queremos para os filhos deste país. Tal como na crise, estamos a passar ao lado do que é fundamental e, neste caso, pensamos que o que é urgente é a desconstrução da reforma de Bolonha. Só assim, cremos, se pode redefinir a Universidade de hoje para um melhor ensino de amanhã. Aproveito então para apelar que se faça e com urgência uma profunda reflexão sobre os impactes da reforma de Bolonha na qualidade do ensino que hoje é prestado nas Universidades.

 

(continua)

 

 Fotografia do utilizador Júlio Marques Mota

Docente na Faculdade de Economia

Universidade de Coimbra

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