Portugal tem um único problema político: o Estado engordou monstruosamente. A despesa pública é insustentável e oprime economia e sociedade. Este é o mal central e origem de todos os outros males, da crise financeira ao desemprego, da recessão à depressão generalizada.
Este problema simples tem solução linear: reduzir custos. O único caminho possível é eliminar organismos, dispensar pessoal, repensar a estrutura, alterar regras, fazer poupanças a todos os níveis.
O nosso Estado tem de ser capaz de viver normalmente com cerca de 85% das despesas que tinha em 2010. Ou seja, gastar hoje, em termos reais, o que gastava há dez anos. Dizendo assim parece fácil, mas obviamente não é.
Falamos do Estado, com despesas que são metade do produto nacional e afectam toda a sociedade. Pior ainda, inverter um processo de engorda demora tempo.
Como a desconfiança dos credores exige resultados rápidos, é preciso usar expedientes temporários, como subir impostos e cortar salários e pensões. Isso tem apenas efeitos pontuais, inúteis para o problema básico, mas dão-nos tempo até as medidas de fundo operarem.
O problema é simples mas não o querem ver. O Governo, mais de um ano após o início do ajustamento, continua a insistir em medidas transitórias, sem impacto estrutural. A sociedade, essa ainda entende menos.
Por exemplo, se o Estado tivesse a coragem de enfrentar a questão real, e despedisse funcionários, iria o Tribunal Constitucional permitir? Exigiria despedimentos iguais no sector privado, numa distorcida e tacanha ideia de equidade?
«Stendhal em Portugal – Ensino e Recepção» uma palestra de Ofélia Paiva Monteiro, publicada, como muitos outros estudos seus, na Internet, proporcionando aos curiosos ou mesmo apaixonados pelos meandros literários, uma continuidade de estudo pela revivescência de factos, figuras e valores, alguns dos quais por nós também passaram, juntamente com outros que formam o cadinho das vivências de cada um.
Neste trabalho, feito para projecção do intercâmbio cultural entre Portugal e a França, como homenagem ao professor da Faculdade de Letras do Porto Dr. Ferreira de Brito, apresenta Ofélia Paiva Monteiro, antes de se lançar sobre o tema da sua palestra – Stendhal … - uma evocação de um comum professor nosso, leitor de francês na Faculdade de Letras de Coimbra, que para mim também constituiu, nesses tempos, deslumbramento pela presença francesa de alguém com o humor, a sensibilidade e o espírito que lhe vinha do seu país de larga tradição cultural. Para mim também M. Jean Girodon foi alguém que marcou o meu percurso na língua e literatura francesas que a biblioteca do Instituto Francês, dirigido pelo Sr. França Amado, personagem de bon-vivant também marcante no apoio cultural da Faculdade de Letras de Coimbra, possibilitava, com a requisição de livros de maravilha, num percurso iniciado na biblioteca do Liceu Salazar em Lourenço Marques razoavelmente preenchida e frequentada pelos alunos interessados.
Não posso deixar de transcrever as palavras de Ofélia Paiva Monteiro, que eu conheci em Coimbra, era segundanista de Filologia Românica, quando eu iniciava a minha vida universitária, de caloira no mesmo curso. Da mesma idade – a Ofélia, aliás, um ou dois meses mais nova do que eu e mais adiantada, como estudante precoce, considerada como uma presença que se impunha, não só pela delicadeza e suavidade dos seus gestos e falas, como pelo seu saber que ela vastamente difundiu ao longo da vida, quer nas suas aulas de professora catedrática, quer em palestras e nos seus escritos bastamente divulgados, como os de outros professores sob a sua orientação, em que estes lhe admiram a competência e a sedução da presença, do discurso e do modo:
Andava eu pelos dezoito anos – estava-se em 1953 ou 54 – e frequentava Filologia Românica em Coimbra quando li pela primeira vez Stendhal, mais concretamenteLe Rouge et le Noir, não porque os programas de Literatura Francesa mo pedissem, mas porque a curiosidade me movera a seleccionar este romance, que constantemente encontrava referido, para preparação de um dos exames finais – três ao longo da licenciatura – da disciplina então chamada “Curso Prático de Língua Francesa”.
Um só leitor se encarregava dela para a totalidade dos alunos que seguiam Filologia Românica (uns 90); era um leitor colocado na Faculdade de Letras pelo Governo francês, a cujos quadros de ensino pertencia, um leitor a quem oficialmente cabia, pois, o papel de se tornar um agente dinâmico do ensino e da difusão da língua e da cultura francesas, que gozavam ainda entre nós de muito prestígio; no cumprimento desta missão, esse leitor – Jean Girodon (1) – era uma figura nuclear da vida do então e ainda hoje chamado Instituto de Estudos Franceses (que Eugéniode Castro havia criado na década de 30), órgão que a Embaixada Francesa e os seus Serviços Culturais entendiam – saudosos tempos! – como um verdadeiro centro representativo e fomentador da cultura do seu País no lato domínio das ciências humanas. Daí o apoio notável que lhe davam: através da Embaixada, a biblioteca do Instituto recebia regularmente contingentes de livros que a mantinham actualizada, beneficiava da assinatura de numerosas revistas, enriquecia-se de material audiovisual, acolhia, para conferências ou concertos, personalidades francesas de vulto e premiava com algumas bolsas de estudo jovens investigadores ou alunos que se tivessem distinguido. Por tudo isto, o Instituto de Estudos Franceses era um espaço que toda a Faculdade de Letras, professores e estudantes (mas também os havia de outras Faculdades), frequentava para ler e conversar um pouco, um espaço onde se respirava com algum desafogo no meio do fechamento que então pesava no País e tanto se reflectia na Universidade: onde mais se encontrariam, por exemplo, aNouvelle Revue Française,EspritouLes Temps Modernes? Poderoso agente do intercâmbioentre a França e Portugal foi assim este núcleo de cultura francesaque dava apoio a investigadores e professores do ensino superior e doensino secundário e que ajudava a despertar para a aventura intelectuale estética os jovens com alguma sensibilidade e capacidade interrogante.Homem de cultura abrangente e bom conhecedor das nossas coisas, o Leitor que recordei era exigente, como, aliás, o sistema escolar enquadrante.Preparar o exame final da disciplina que regia representava umesforço apreciável, já que implicava, para além do domínio das matériase dos textos estudados nas aulas, o conhecimento de assuntos que nãotinham sido leccionados, mas tão-só combinados entre o professor e cadaaluno para serem alvo de prova oral: um naipe de assuntos de geografiae história de França, a tradução para francês de um texto de autor portuguêsrazoavelmente longo (um conto de Eça, por exemplo) e, finalmente,o estudo de três obras literárias francesas seleccionadas pelo candidato –uma obra poética (lembro-me de ter escolhido num ano asCinq PrièresdePéguy), uma obra dramática (lembro-me de ter estudado, por exemplo, Antigonede Anouilh), uma obra narrativa (e foi assim que prepareiLeRouge et le Noir); o aluno devia ser capaz de realizar uma exposição de um quarto de hora a partir de um tema proposto pelo professor sobre qualquer das obras que tivesse eleito. Como se poderá concluir, este sistema que me compraz evocar, tão grande é o contraste que oferece ao que hoje se passa, impunha beneficamente aos estudantes um trabalho pessoal árduo mas compensador, que não só lhes desenvolvia a capacidade de pesquisa, a elaboração do pensamento e do discurso e o domínio do Francês, mas também lhes alargava o âmbito do que aprendiam nas duas disciplinas anuais de Literatura Francesa que o curriculum comportava, uma fundamentalmente consagrada ao século XVI – os poetas da “Pléiade” constituíam o seu núcleo forte –, a segunda centrada nas Luzes e no dealbar do Romantismo, tendo por protagonistas Voltaire e Chateaubriand. A França mais moderna chegava-nos assim através do Curso Prático de Francês, quer pelos assuntos e textos trabalhados sistematizadamente nas aulas, quer pela matéria que preparávamos sozinhos; mas as disciplinas de Literatura, a cargo de professores portugueses que, não sendo especialistas da área francesa, procuravam aproximar os conteúdos programáticos de campos da sua pesquisa e do seu interesse, não deixavam de ser motivadoras e formativas, quer pelos temas que propunham, quer pelas perspectivas comparatistas que frequentemente insinuavam, convocando, por exemplo, paralelismos com a nossa história cultural e literária.
(1) A Jean Girodon se devem trabalhos sobre o ensino do francês e ecos de autores franceses em escritores portugueses, particularmente Eça de Queirós, de quem traduziuO Crime do Padre Amaro(Le Crime du Padre Amaro, Paris, Éditions de la Différence, 721985). Citem-se entre os seus estudos: “Eça de Queirós, Flaubert et Anatole France”,inBulletin des Études Portugaises, 20, 1957, pp. 152-207; “O EgyptoetLe NildeMaxime du Camp”,ibid., 22, 1959-1960, pp.129-186; “Fiches queirosiennes”,ibid., 27,1966, pp. 189-219.)
A esta introdução, destacando o papel marcante de um professor responsável pela orientação intelectual de alunos fascinados por um país a que tinham acesso não só graças à competência desse mesmo professor, mas também à inteligência da divulgação de livros feita pela Embaixada Francesa de então, desenvolve Ofélia P. M. o tema escolhido, na forma elegante e sagaz que sempre lhe conhecemos, através de estudos seus que nos acompanharam no nosso percurso docente, e que tanto clarificaram as análises literárias de alguns autores, com relevo para Garrett.
Um estudo precioso sobre Stendhal e o beylismo, e a posição pessoal relativamente à obra, de análise não separada das vivências pessoais do seu autor, justificativas do universo de complexidades psicológicas das personagens stendhalianas, ao contrário do que exigia a Nouvelle Critique ou mesmo o estruturalismo ou o formalismo, refractários a ponderações de maior subjectividade, para além de apontar influências nos escritores que se lhe seguiram e, entre nós, a perspectiva narrativa, do ponto de vista da focalização interna, de que Eça se beneficiou.
Um trabalho rico de pormenores vários, resultantes do cuidado extremo posto na informação dos detalhes mais inesperados – por exemplo, a referência ao número de alunos frequentadores dos cursos de M. Jean Girodon – a elegância da exposição e da expressão, a clareza argumentativa, a inteligência da descoberta…
Naquele final de tarde calorento de um dia de Verão carioca estava bastante cansada. A perspectiva de encarar um ónibus atulhado de gente às 6 horas da tarde deixava-me desanimada. E, ainda, carregando aquele embrulho desengonçado que a cada passo que eu dava insistia em sair do seu esconderijo de papel pardo.
Mesmo sendo filha de imigrante sem muitos recursos, me considerava uma privilegiada. Depois de anos de estudo em colégios públicos, o que para aquela época dos anos 60 era uma vantagem, com muito empenho, esforço e sacrifício dos meus pais, através de um concorrido concurso público, entrei enfim na Faculdade Federal de Medicina e Cirurgia do RJ. Era a realização de um sonho acalentado desde o Colégio Pedro II.
Os livros das matérias básicas comprava, os demais buscava nas estantes da biblioteca da faculdade. A lista de matérias era enorme e como prova-de-fogo para os calouros as aulas de anatomia inspiravam um misto de terror e curiosidade.
Situada numa ala mais isolada, a Sala de Anatomia abrigava em suas paredes azulejadas mesas altas, para as dissecções, armários com ossos, já preparados para estudo (ossário), e tanques com corpos de indigentes, abandonados no IML, sem parentes ou donos. Murchos, escurecidos pelo formol, estavam prontos para dar a sua última contribuição à humanidade, o seu próprio corpo para estudo e primeira lição aos calouros: a humildade. Ali eles eram a prova cabal, a suprema verdade, sem o espírito que nos anima não somos nada. Só um monte de ossos e carne.
Depois das aulas, saí da Escola escondida, fugindo do trote, não queria minhas unhas cortadas, meu cabelo pintado e nem minhas roupas sujas de ovo. Fui a pé até a Central do Brasil para pegar o ónibus. No ponto as pessoas se apinhavam, procurando um lugar para entrar primeiro. O suor brotava da fronte e corria na face daquela gente como uma viçosa nascente. Ansiosos, todos queriam chegar a casa mais cedo, depois de mais um dia de trabalho. Filas se formavam na tentativa de ordenar a entrada nas conduções que, via de regra, chegavam sempre atrasadas. Já dentro dos ónibus os passageiros que ficavam em pé se acotovelavam, buscavam um pouco de espaço. Procurei com os olhos um lugar para me acomodar, quem sabe com um pouco de sorte alguém se levantasse na próxima parada e eu assim poderia, enfim, me sentar. Mas qual nada, parecíamos sardinhas em lata. A cada solavanco, um protesto generalizado: - Como é que é, ó meu...vai mais de vagar...
Já quase sem ar, no meio daquela confusão de empurrões e odores, percebi que, como por encanto, as pessoas se afastavam e surgia um espaço. Alguém perto de mim se levantou e eu pude então, agradecida me sentar. Foi nesse momento que vi, ao me ajeitar, que do embrulho que eu carregava emergia, através do papel rasgado, branca e cheirando a formol, a cabeça de um fémur que levava para casa para estudar...
CONFUSÃO NO CAMPO DAS NOVAS TECNOLOGIAS ELECTRÓNICAS
I
De 2007 até à data, têm-se verificado inúmeras inovações nos aparelhos electrónicos de intercomunicação, causando grande confusão nas mentes de milhões de seus utentes, sobretudo dos meios analfabetizados através do mundo.
Suscitou-me este apontamento a recente entrevista dada por Cathy Coughly (GMO- Global Marketing Officer, de AT & T) ao magazine FORTUNE (Vf. Vol.166, Nº4, de Set. 03. 2012), onde ela afirmou que, em curto espaço de tempo, os utentes destes aparelhos de intercomunicação electrónica se demarcam dessas inovações com seu natural receio de que os mesmos aparelhos desapareçam ou venham a ser simplesmente postos de parte, como foram suplantados os aparelhos de reprodução musical nos finais do último século.
Tão forte é a ligação dos milhões de utentes aos aparelhos aos quais se habituaram no círculo familiar ou profissional, que eles não querem outros em substituição, além disso implicar novas despesas e a drástica mudança nos hábitos pessoais. O computador e o telemóvel, eles consideram-nos como fazendo parte integrante de sua vida, dali seu natural receio de que os mesmos venham a desaparecer. São uns autênticos “doentes” duma psicose conhecida como nomophobia.
Segundo Cathy Coughly, sua grande organização despendeu em 2011 mais de 2 biliões de dólares na introdução das inovações nesses aparelhos com suas específicas novas funções. Assim, por exemplo, com um simples clique no novo telemóvel um freguês dum Restaurante poderá pedir um cappuccino, sem o recurso ao seu porta-moedas ou ao seu cartão de crédito e também poderá pedir ao dono da vizinha mercearia o fornecimento de artigos de consumo doméstico com aquele mágico clique. Já não haverá a necessidade de cunhar moedas nas próximas décadas, quiçá mesmo as Casas de Moeda desaparecerão atirando ao desemprego milhares de artistas!
Um jornalista acaba de gabar-se de ter passado uma semana de férias sem puxar do seu porta-moedas ou do seu cartão de crédito para fazer todas as suas despesas. Maravilha das maravilhas dirão estupefactas as pessoas da velha guarda, que nunca sonharam com estas artimanhas fora dum espectáculo de magia branca!
II
Longe de mim a menor insinuação contra o avanço da Ciência e da Tecnologia tão necessário e até indispensável à segurança da Terra e seu ambiente, bem como aos milhões dos seus habitantes gemendo na mais abjecta penúria com carências gritantes de desemprego, de água, pão, energia, luz, vestuário, higiene pública, medicamentos curativos e preventivos, vacinas, assistência médico-hospitalar e, até mesmo, duma única e adequada refeição diária. Santo Deus!
Os homens da nova geração procuram na Ciência e na Tecnologia novos meios ultramodernos, qual criança amimada com vários brinquedos, que se agarra a um dos brinquedos e ao encontrar outro mais fascinante esquece-se do primeiro que fora seu enlevo por vários dias. Até onde irá parar essa corrida por sofisticados e muito onerosos aparelhos electrónicos perscrutando as profundezas dos oceanos, das minas, dum vulcão extinto ou em busca de novos mundos além do perímetro do radioso sistema solar. Não seria muito louvável que os cientistas e os tecnólogos sopeassem seus sonhados anseios e virassem suas atenções para minorar o sofrimentos de milhões de desgraçados vivendo na mais negra miséria?
Há cinco séculos os portugueses de antanho orgulhavam-se de suas conquistas e descobertas desafiando a Humanidade com o conceito de que se mais mundos houvera, lá chegara o quinhentista português. Será que a Ciência e a Tecnologia do século XXI nos dará esses novos mundos dum Universo sem fim?
Os Romanos legaram-nos um grande aforismo latino ao afirmar que quem trata tanto das coisas grandes como das pequenas é um homem perfeito.
1930 - junco pirata fundeado no porto interior de Macau, aprosionado pela Armada Portuguesa
Ao contrário do que está escrito na Wikipédia, foi em 1521 que a pequena península de A-mao Gao, foi concedida, pelo Celeste Império, a um punhado de marinheiros portugueses, por terem exterminado o famoso pirata Tchang-sy-láo, que assolava os mares da China. Concessão feita para que os portugueses a partir dali pudessem comercializar não só com a China, mas com todo o Oriente.
Esses privilégios foram não só confirmados, mas prometidos a seus sucessores e compatrícios, no ano de 1809, quando, mais uma vez, os portugueses deram prova do seu inigualável valor, ao derrotarem outro temível pirata, Apocha, com o nome de Qua-apou-Chay e seu parente Ajuo-Chay, descendentes da antiga dinastia que os tártaros haviam expulsado do trono.
Em 1785 estes chins revoltaram-se, querendo retomar o trono que lhe havia sido usurpado, conseguindo uma multidão de apoio às suas ideias e começaram a atacar navios chineses e algumas ilhas de Quang-tong. Satisfeitos com os sucessos obtidos e engrossando cada vez mais adeptos, em 1807 chegaram a ameaçar o interior de Cantão, que aparelhou 80 taós (juncos de guerra) e várias lorchas (embarcações semelhantes aos juncos, mas de menor porte), que acabaram completamente derrotados.
Qua-apou-Chay e Ajuo-Chay eram os donos dos mares da China e a sua frota alcançava 600 juncos, 350 do comando do primeiro e 250 do segundo, além de auxiliados por milhares de lorchas. Diariamente apresavam centenas de barcos e recrutavam mais gente, chegando a contar com 40 a 60.000 combatentes! Com este potencial nada parecia resistir-lhes. Decidiram por fim dar também caça aos portugueses, que até 1805 haviam sido respeitados.
O Senado de Macau mandou logo construir um brigue “Princesa Carlota” entregue ao Tenente Pereira Barreto, uma fragatinha “Ulisses” ao Capitão de Artilharia José Pinto Alcoforado de Azevedo e Sousa e uma pequena lorcha de 20 toneladas ao Piloto José Gonçalves Carocha.
Saídos para o mar, no primeiro encontro desbaratam 50 juncos e táos, entre eles um grande táo de 20 peças e 350 homens que foi abordado pelo Tenente Barreto, seguido de trinta marinheiros; de espada nas mãos mataram toda a tripulação, que não se rendeu nem um! O valente chefe do táo, o último a ser vencido, à vista da derrota, agarrou a mulher pelos cabelos, decepa-lhe a cabeça com um só golpe e abraçado ao cadáver atirou-se às ondas. Tal a fama deste português (Tenente Barreto) que passou a ser chamado de Tigre!
Para se desforrar da derrota sofrida, os piratas chins decidiram ficar também pairando perto de Macau e ao saberem da partida do Tigre na Ulisses para o Rio de Janeiro para cumprimentar o príncipe regente, que o promoveu a Capitão-de-Fragata, saquearam algumas ilhas próximas de Macau e voltaram a atacar ferozmente a esquadra imperial, que mais uma vez desbarataram.
Pouco tempo depois, um brigue vindo de Goa foi acometido pelos piratas com toda a sua esquadra, que o cercou. O brigue foi abalroado, centenas de homens o invadiram, e depois de totalmente vencido foi conduzido à vista de Macau com a bandeira portuguesa arrastando na água em sinal de desprezo.
A situação tornara-se difícil para Macau, e para o Imperador que assinou uma convenção com os portugueses em que a China acordou em pagar 80.000 taéis de prata (cerca de 40 gr. cada) e Macau poria em serviço as seis embarcações de que dispunha.
A “marinha” de Macau não dispunha de mais do que 6 navios, com 118 peças de pequeno calibre e 730 homens:
- Inquestionável, de 400 toneladas e 26 peças, 160 homens, e o comandante em chefe o Capitão de Artilharia, atrás mencionado;
- Palas: 18 peças, 130 homens sob o comando de Luiz da Costa Miranda;
- Indiana: 24 peças, 120 homens comandado por Anacleto Alves da Silva;
- S. Miguel: 16, com 100, comandado por Félix José dos Remédios;
- Belizário: 18, com 120, comando de José Alves; e
- Princesa Carlota: 16, 100 comando do Piloto António José Carocha
A estes juntou-se a armada chinesa composta de 60 táos, 1.200 peças de artilharia e 18.000 soldados e marinheiros.
No primeiro dia de combate a maior parte dos juncos inimigos fugiu e dispersou, alguns foram queimados, outros afundados. Dias depois, à vista de Macau, apareceram os revoltosos com três grandes grupos de navios e ali mesmo perderam mais quinze, sem que alguma baixa se fizesse do lado português.
Qua-apou-Chay viu que tinha a temer só dos portugueses e propôs respeitá-los, não se intrometendo eles comigo, pedindo que o avisassem para não perseguir os vasos portugueses que navegarão livremente! Recebeu como resposta que se sujeitasse ao Imperador, que em Janeiro de 1810 propôs amnistia ampla a todos que se entregassem. Três dias depois encontraram-se os combatentes novamente e cortada a retirada a Aguo-Chay este mandou parlamentários para se entregar com 100 juncos, 30 lorchas e 8.000 homens, que o magistrado, ministro Arriaga, escolhido pelo revoltoso chin como medianeiro, aceitou. As embarcações foram entregues e as tripulações dispersas.
A mesma proposta foi feita a Qua-apou-Chay, que recusou, apesar de se ver sem o apoio do primo e de tantos navios e continuou rondando as saídas de Macau, julgando-se capaz de derrotar os portugueses.
A 12 de Abril apresenta-se com a sua esquadra de 300 juncos, 20.000 homens e 1.500 bocas de fogo, manobrando para formar três divisões, procurando dispersar os poucos portugueses. Alcoforado, comandante em chefe, ataca sobre a sua frente com os seis navios, de tal forma que a vanguarda inimiga, composta dos maiores juncos não pôde resistir ao choque. Dez ou doze foram logo desmastreados, quatro afundaram e os restantes dispersaram-se, dando espaço à segunda divisão já agrupada em torno dos portugueses. O ataque foi feroz, mas estes, ao fim de uma hora puseram os juncos inimigos fora de combate em completa fuga. Restava a terceira divisão aumentada com os dispersos das duas primeiras, ao centro da qual flutuava a bandeira de Qua-apou-Chay. O comandante português não hesitou em segui-lo e mandou atacar, jogando artilharia em todas as direcções, sem que algum tiro deixasse de acertar o alvo e ferisse horrivelmente.
Um dos navios mais importantes era o tal pagode, sempre escoltado por grandes juncos e várias lorchas, mas o Carlota ataca todos, atraca-o de tal forma que em poucos minutos o mar ficou coalhado de ídolos e figuras infernais, sem escapar um único bonzo (sacerdote), nem pessoa que nele estivesse! Esta terrível perda para aqueles fanáticos e a morte pavorosa dos bonzos com a destruição dos ídolos, acompanhada do fogo incessante que os portugueses continuaram fazendo, todos os que puderam, fugiram. Os mais afoitos acabaram bloqueados, e Qua-apou-Chay, convencido da inferioridade dos seus meios, mandou parlamentário, propondo capitular. Pedia ainda ao comandante Alcoforado a honra de uma visita para conhecer de perto tão grande Capitão.
Temiam oficiais e marinheiros que isso seria um ardil e aconselhavam-no a não aceitar o convite, mas Alcoforado foi-se encontrar com o grande adversário que lhe disse: “Senhor, tinha intenção de forçar o bloqueio, sacrificando parte da minha esquadra, composta ainda de duzentos e setenta juncos... mas a galhardia com que acabais de confundir-me tira-me todos os desejos de lutar contra os portugueses. Vou entregar-me nas suas mãos.”
Foi aceite a capitulação, mas o entendimento entre o chefe revoltoso e o governador de Cantão, era de desconfiança mútua. Foi mais uma vez Alcoforado o homem de confiança a quem, ambos os lados, entregaram o desfecho da guerra, tendo Qua-apou-Chay recebido a dignidade de mandarim e Almirante Chefe do Celeste Império.
Saiu a frota imperial chinesa para o mar, passando por Macau. O inimigo vencido e reconciliado foi recebido com solenidade no Senado, e disse:
- “Deus imortal! Estão completos os meus desejos, vendo e abraçando os únicos homens que eram capazes de arrostar e destruir o meu poder. Onde está o valoroso comandante da Lorcha Carlota?”
- Às vossas ordens , respondeu Carocha, oferecendo-lhe a mão.
Qua-apou-Chay, com a gravidade chinesa, deu-lhe um demorado abraço, dizendo para os que o rodeavam:
-Eis o homem que mais dano me causou. Ele só, e a sua lorcha, inquietavam a minha esquadra; mas quem pode igualar os portugueses?
Eram assim os portugueses de antanho! Grandes homens que a história, medíocre ou covarde, esqueceu.
Hoje choram pelo comodismo a que se entregaram, deixando os governantes desbaratarem o país!
Rio de Janeiro, 21 de Março de 2011
Francisco Gomes de Amorim
Condensado do livro “Quadros Navais”, do Comandante. Celestino Soares, Lisboa, Imprensa Nacional, 1941.
v Nestes últimos escritos defendi, não uma, não duas, mas três teses, à vez:
ü Que, sem desvalorização cambial, não é possível reduzir a Dívida Externa e, simultaneamente, equilibrar o OGE (por causa da dinâmica da liquidez em circulação);
ü Que estes dois objectivos “macro” não têm o mesmo grau de prioridade (primeiro, há que alcançar e manter o equilíbrio externo, para, só depois, tratar do equilíbrio orçamental);
ü Que, durante o processo de reequilíbrio externo, os deficits orçamentais devem ser financiados, preferencialmente, por Dívida Pública Interna – e nunca por mais Dívida Externa.
v Entretanto, fui deixando, por aqui e por ali, pontas soltas. Chegou a altura de atá-las na medida do possível, começando pela mais simples: o esquema de depósitos suspensivos do dever fiscal (de entrega do imposto ao Estado). Esquema utilizado pela Alemanha Ocidental para reerguer um parque imobiliário que a guerra tinha reduzido a escombros.
v É um esquema simples:
ü São seleccionados uns quantos impostos directos (sobre o rendimento e sobre o capital) que passam a integrar o esquema;
ü Para cada um desses impostos é fixada uma percentagem da colecta que o contribuinte pode, em vez de entregar ao Fisco, depositar - e, se o fizer, suspenderá o dever fiscal relativo à quantia depositada;
ü Esse depósito é por um prazo longo (não inferior a 20 anos) - e rende um juro bruto simbólico, com taxa fixa;
ü Terminado o prazo, extingue-se o dever fiscal - e o depósito pode ser levantado (ou passa a render as taxas de juro do mercado);
ü O depósito pode ser mobilizado (levantado, onerado, mas não transmitido) antes do vencimento - se o contribuinte/depositante se encontrar numa qualquer das situações excepcionais que ficarem taxativamente previstas (nos casos mais graves, extingue-se mesmo o dever fiscal; nos restantes casos, o dever fiscal é distribuído uniformemente pelo prazo remanescente do depósito);
ü Os fundos assim captados ficam expressamente consignados a fins bem determinados.
v Na Alemanha Ocidental, um esquema assim (mas sem a penúltima regra) foi confiado a KfW (Kreditanstall fur Wiederaufbau; hoje KfW Bankengruppe) – uma instituição que rapidamente se tornou num potentado financeiro. Uma instituição tão poderosa que, a partir dos anos ‘60, era ela que ia assegurando boa parte das nossas necessidades de financiamento externo.
v No curto/médio prazo, este esquema tem exactamente o mesmo efeito dos impostos sobre o rendimento disponível. Mas, como tudo nesta vida, tem vantagens e inconvenientes.
v O inconveniente mais significativo talvez seja aumentar a Dívida Pública (a Interna, não a Externa) de longo prazo. Muito embora, o efeito sobre os saldos orçamentais seja insignificante (os juros simbólicos a pagar anualmente) - e o impacte sobre o stock da Dívida Pública só surja no momento em que o dever fiscal se extinguir.
v As vantagens, porém, são muitas e de monta, que resumo em poucas palavras: o contribuinte (pessoa singular ou pessoa colectiva) não fica definitivamente despojado se, entretanto, a vida lhe for madrasta. Pelo contrário (4ª regra), liberta-o, um pouco que seja, da absoluta dependência do tão incensado Estado Social (e dos caprichosos apoios estatais) – e fica a saber exactamente para onde vai aquele seu dinheiro (5ª regra).
v Enfim, é um esquema que alcança a máxima eficiência quando existe um Banco do Tesouro para receber, registar e aplicar os fundos depositados - dos quais terá de ir prestando contas, como é bem de ver.
v Aliás, no meio de tantas disfuncionalidades, o combate à economia subterrânea é também uma prioridade que se impõe, sem exigir mais gastos públicos nem mais impostos. E, na linha da frente, está, não a ASAE, não o Fisco, não os perspicazes magistrados ou os feros juízes – mas o vulgar cartão de pagamentos.
v É chocante ver como, Governo após Governo, se permite que a UNICRE tarife a utilização dos “Cartões” a tal ponto que os comerciantes têm um incentivo mais para mergulhar na economia subterrânea – premiando os pagamentos em “dinheiro vivo” (acho esta expressão deliciosa).
v O que se esperaria de Governos sensatos, desejosos de esvaziar a economia subterrânea (e a consequente evasão fiscal) era que promovessem o mais possível o uso do “Cartão”, convencendo os comerciantes a tornarem-se nos seus mais decisivos aliados. Como?
v Simples. Concedendo-lhes um crédito fiscal (no IRS e no IRC) em função do total das receitas que obtivessem mediante a utilização de “Cartões” - e pondo juízo na cabeça da UNICRE (isto é, dos Bancos seus associados). Coisa fácil de fazer, pois basta que a UNICRE entregue à Administração Fiscal as estatísticas por comerciante (o que hoje, aliás, já faz).
v É que, contrariamente ao que por aí corre, em processos de ajustamento estrutural sem instrumento cambial (como aquele que estamos a viver), nem tudo se resume a mais intermediação fiscal (e a mais impostos). Aí, a regulação do sistema financeiro tem uma importância equiparável à das medidas mais ambiciosas da política fiscal/orçamental. Como veremos.